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26 de out. de 2021

escutar as vozes

 

        Uma pessoa sabe que está morta quando não consegue mais escutar a voz dos animais, dos espíritos, das árvores, dos rios. Cada ente tem sua palavra, sua entonação própria e vocabulário. A paca fala de uma maneira, o tabaco fala de outra. A anta tem um acento, o jacaretinga tem outro. Tem palavras que só as onças usam e que não é dado a nenhum outro animal dizê-las. Do mesmo modo toda a diversidade dos reinos dos bichos e das plantas.
Tururu etê turuliu caa nañaña u eê sapi, gritam os macacos quando entram em guerra.
A voz do peixe, em geral, é em torvelinho; mas a fala da inaai é tal qual a fala de gente, mas com um acento muito mais estrídulo. A voz da árvore tem semelhança com a voz da nuvem, e a voz da pedra é em igual tom ao da voz dos espíritos, uma fala muito clara e cortante. Só quem está vivo consegue escutar a voz do mundo, entender sua linguagem, seu rumor, os ermos e luminescências de suas palavras, e por estar vivo é que consegue responder.
Antes de ser vendida e levada embora, Iñe-e deslizava pelas águas dos rios como quem vive. Não pensamos na respiração quando estamos vivos, não nos ocupamos em entender os movimentos de encher os pulmões de ar ou de esvaziá-los; não lembramos de sentir o calor do sopro passando pelas narinas, mornamente, nem de sentir seu torpor quando está frio, muito frio. (p.38)


    A menina, entretida no silêncio que era seu, começou a perceber a voz densa do rio, apurando os ouvidos, colocando-os entre as conchas das mãos, para escutá-lo melhor, tentando entender o que dizia. A voz atravessava distâncias, grossas paredes, massas de ar gelado. No começo, não havia nenhum som que pudesse distinguir como palavra, fluss-fluss-fluss, era o que ouvia, som comum de correnteza. Mas não demorou para que as águas se fizessem minimamente inteligíveis.
Pode me chamar de rio, odo, Fluss, river, rivière, flusmine, fluxo de água rasgando a terra como a trajetória de sangue em um corpo animal. Pode me chamar de água. E água é tudo e está em tudo que compõe este mundo. Aqui, neste lugar, me chamam Isar, Isar Fluss. Esse nome significa torrente, e por ser torrente um nome de mulher eu sou Isar, rio-fêmea. E, embora os homens pouco atentem a isso quando nos nomeiam, há outros rios fêmea como eu, como o seu Paranáhuazú. Fossem as mulheres a dar nomes às coisas, cidades, rios, passagens, montanhas, talvez percebessem melhor que nem tudo no mundo é definido como macho. Mas de fato pouco importa o nome que me dão, porque Eu sou. O Espírito pairava sobre as águas, escreveu a mão áspera deslizando o cálamo sobre o papiro. Kneph enroscado em um vaso de água, o ovo cósmico chocado em minha superfície. (p.56)


    Mas toda viagem dura o tempo que tem de durar, da saída à chegada. Não se encurta nem se encomprida ela. Mecanismo de viagem é de durar o tempo que precisa. Antecipação e atraso não comungam a existência ali, na vera, e tampouco precisão. Antecipação e atraso são tipos de engano, essa areinha jogada nos olhos. (p.149)

Micheliny Verunschk, O som do rugido da onça. São Paulo, Companhia das letras, 2021.

22 de mar. de 2021

o antes o depois o agora

 



OS ANOS NOVENTA


você não estava lá nas coisas mais decisivas da minha vida

mas é assim mesmo: historiadores e arqueólogos

nunca estiveram presentes para testemunhar

os acontecimentos isso fazem os jornalistas e os


videntes você era apenas um menino quando

kurt cobain morreu nem poderia ainda saber o dano

que causaria sua existência de crisálida taurino e

primaveril quando meu destino cruzasse com o seu


e andaríamos de mãos dadas e suando verão afora

como se fosse o primeiro (e era) berlim não era

tão esplendorosa quanto seus cachos jakob mas você

nunca soube o que foi ter 16 anos em recife na década


de noventa FHC presidente desemprego torneiras secas

filariose cólera sem vale do rio doce mas tinha chico science

abril pro rock o pior é agora não tem berlim não tem recife

não tem chico science não tem kurt cobain nem você mas FHC

ainda tem






O CAVALO #2


tu vai embora

e leva tudo o que é

meu e teu a galope

contigo

o que sobra é

writer`s block

e as camisinhas pra jogar

fora que deixo no chão

como se fossem filhos

que não quero expulsar

da casa pra lembrar do pai

e se eu não tivesse mil anos

e fosse fértil seria linda

a linhagem de puro-sangue

seus filhos os potros

que eu-égua teria parido


você vai embora e

não fica nada além

do cheiro de estábulo

limpo um misto empoeirado

de saudade e alívio






METALINGUAGEM


antes de dormir olho as 207 fotos da sua

conta no facebook porque as memórias

que tenho de você já não são mais suficientes

e porque você não manda nudes não importa

o quanto eu peça já não bastam mais as fotos

que consegui stalkear em contas de tumblr

desativadas nem me bastam as fotos da sua cara

que juntei arqueóloga de tweets de 2002 e em posts 

de blogs mortos me bastam menos ainda

as 26 fotos que fiz de você enquanto você escovava

clandestino os dentes da minha casa na minha

cara nada me basta eu quero testemunhas sua existência

em tempo real quero ver sua cara a cinco centímetros

da minha fazer fotos disso você tão perto ilegal

você aqui.



Adelaide Ivánova, em 13 nudes (edições macondo)

16 de fev. de 2021

contornos atemporais

 


Ana Mendieta, Imagem de Yagul, 1973


as mulheres são todas iguais

todas, sem exceção. as de ontem, iguais às de hoje, as de hoje
iguais às de amanhã

que não se engane o meu amor, porque em breve
a ex dele voltará através de mim, para dizer pela minha boca o
que não pode dizer pela sua

eu farei o mesmo, pela boca da próxima
e assim sucessivamente

é uma maldição
entramos na vida de um homem como se fôssemos cada uma
uma só

com o passar do tempo acabamos nos tornando sempre a
mesma

juramos sempre o mesmo amor no começo
rogamos sempre as mesmas pragas antes de bater a porta
no final

(foi por causa de um sonho
que lisa começou a ler sylvia plath

sylvia havia terminado com ted há pouco quando se suicidou
usando gás de cozinha
assia ainda estava casada com ele quando repetiu o ato

a mesma cena
o mesmo gás
o mesmo homem

as mulheres são todas iguais)

pelas mãos de Salomé, também eu servi a cabeça d ejoão batista
numa bandeja

pelas mãos de Lucrécia bórgia, também eu misturei cantarella no
vinho
e terminei o dia envenenando um marido

esta noite o meu amor se deitará com um novo amor. Nela
estaremos todas

repetíveis, labirínticas
espelhos
espectros umas das outras

de madrugada ela o seduzirá com beijos e cheiros. quando ele
descobrir que é a mesma mulher de sempre

o mesmo antigo demônio fêmeo

nessa hora será tarde. já a terá fecundado
já terá continuado nossa linhagem má

numa filha


*
*

amar o homem que tu és
amar o homem que tu és apesar do homem

amar sabendo que um homem pode se dar ao luxo de se perder
no amor – mas não uma mulher

amar-te, meu amor
mas sem esquecer que a mulher de nós dois sou eu

eu não posso me esquecer de mim nas tantas mulheres que fui

não posso esquecer eva
não posso esquecer agar atravessando o deserto com Ismael no
colo

tantas mães atravessam a cidade de são paulo com seus filhos
no colo, às seis e pouco da manhã
os tempos mudam, as mulheres permanecem as mesmas
não há mãe que não tenha acordado alguma noite só para se
certificar de que o ar também entra nos pulmões mais frágeis da
casa

não há mãe que não tenha passado alguma vez pelo terror de
imaginar que talvez o peito não dê leite

que não seja capaz de chorar um rio no meio do saara
e que chorando não sonhe com um modo de decantar o sal da
água
para dá-la de beber a uma boca com sede

meu amor, somos tão sozinhas

não posso te amar sem ressalvas
sem lembrar o tempo todo que no fundo só temos umas às outras

ninguém mais
ni una a menos

não esquecerei joana, queimada em praça pública
a beata Lindalva
a virgem maria teresa goretti

não devo esquecer quantos litros de sangue uma mulher
deve perder
para que cesse o pulso
e assim sem pulso possa finalmente ser considerada santa pela
nossa santa igreja

tu falas sobre como as aves da região são exuberantes

eu penso que também gosto de observá-las

há noites em que fico mais de hora sentada à soleira da porta
nos fundos de casa
olho o copado da jabuticabeira
a roupa no varal

muitas de nós ainda passam noites em claro pelas mulheres
de salém

sou uma delas
sei que é preciso cuidar para que os urubus não comam corpos
inteiros da nossa memória

se vierem graúnas, em bandos
e arrancarem a bicadas os fios de cabelo
para fazerem ninhos
se vierem beija-flores e furarem os olhos, para beberem do rio
se quiserem levar também os cílios, os pelos do sexo, até lascas
de unha – que levem
mas é preciso cuidar para que pelo menos uma parte do corpo
de toda mulher morta
reste intacta

o coração
o projeto de libélula que ardeu em algum dos seus gestos
o nome
o silêncio

a mim não me cabe amar inadvertidamente

não posso esquecer das últimas horas de eloá
o carro em que marielle estava na noite de 14 de março de 2018

uma mulher a cada duas horas no brasil
seis mulheres a cada hora no mundo

não esquecerei micheliny, filha da filha da índia que foi pega no
laço, como um animal

não esquecerei nina, que não esquecerá bruna
ambas se erguendo juntas da mesma noite

não esquecerei bárbara, o olho roxo, a costela trincada

não esquecerei minha irmã
minha mãe
minha avó, morta com um tiro no peito

tu dizes que me amas, eu digo que te amo mais

eu te amo mais, meu amor

porque tu me amas com amor apenas
mas eu tive que aprender a te amar com ódio


Mar Becker, em A mulher submersa (Urutau, 2020) 


11 de fev. de 2021

devoções incertas


Foto: Elisa Tonon


nunca soube ao certo o que fazer com o centro da catedral
este monumento magnânimo/opressor erguido por
[mistérios e partículas
nunca soube discernir o oco da claraboia
amar sempre implicou em abrir caixões cheios de
[espelhos, debruçar-se no impronunciável,
       [atirar-se em poços secos, entrar numa casa na
          [qual os lençóis brancos sobre os móveis não
[conseguiriam impedir o acúmulo de poeira

todos os dias homens e mulheres ajoelham-se diante dos
     [fachos que emprestando-lhe luz tornam a poeira visíel
[e revelam a sua beleza – os olhos atônitos
todos os dias homens e mulheres amam
todos os dias homens e mulheres descobrem que a
       [beleza antecede a perda – e não houve sequer
           [um que encontrou nela um cílio de horizonte
muitos se suicidaram após tal revelação
não sem antes por vergonha e terna cautela assassinarem
[os próprios filhos
enquanto estes dormiam profundamente 

todas as noites homens e mulheres se refugiam na posição de feto
repudiam as paredes frias do transitório
escondem-se debaixo de camas hospitalares
empilham garrafas vazias, brinquedos quebrados e
      [compêndios sobre a fatalidade do nada
todas as noites e todos os dias homens e mulheres são
[arremessados uns pelos outros na encruzilhada
         [que não apresenta direções a não ser para o lugar
[mais inóspito e indesejado:
o centro da catedral.

acrobatas cegos criados por algum demiurgo comovido
    [pelo tédio passarão os restos de suas vidas fazendo de 
            [absolutamente tudo para ludibria-lo (ou seja:
                                                        [ludibriarem-se):
trabalharão tarde da noite em edifícios comerciais
investigarão os confins da célula e da psique
elaborarão formas sutis de decodificar o inconsciente
serão displicentes com os próprios sonhos
lerão com voz altíssima as parábolas de cristo
declararão guerras e mais guerras
escreverão grandes romances
contarão histórias ao lado de uma pequenina cama
educarão crianças – erigirão mais leis para elas
reformarão bancos e cartórios
assinarão milhões de vezes um vago nome
entrarão em casa sem nunca de fato abrirem a sua
                                                [verdadeira porta
menosprezarão as estrelas que contam segredos de
        [galáxias distantes e extremamente próximas
dizimarão florestas inteiras por menosprezá-las
tramarão contra os irmãos para herdarem as terras dos
        [pais que não amaram – ou que amaram demais
darão festas para os filhos desejarem algo antes de
                                                    [apagarem a vela
desejarão nunca terem nascido – e, paradoxalmente, 
                                                [desejarão nunca morrer

nunca soubemos ao certo o que fazer com o centro da 
                                                                [catedral
nunca soubemos discernir o oco da claraboia – precisa
                                                                   [amálgama
mas sempre haverá dois jovens muito jovens sentados na 
                                                                    [calçada
beijando-se pela primeira vez, enquanto o sol se põe.

Isadora Krieger, “Explorações cardiomitológicas”, editora da casa, 2019 

9 de fev. de 2021

dois animais sa(n)grados

 

Love, Alexander Milov


estamos sentados um de costas para o outro
as pernas dobradas, as mãos nos limites das próprias mãos
monges preguiçosos em estado de sonolência,
   [inspirando e expirando o ar tóxico – da covardia?
O ancestral conflito entre o palco e a caverna
Mas não, este nunca foi o nosso principal embate.
[já havíamos iniciado o exaustivo trabalho de
    [tirar as milhares de lâmpadas do palco e de
[tentar acendê-las na caverna.

agora tudo se resume às nossas novas posições, que por
     [mais ilusórias que possam ser, e talvez exatamente
  [por isto, geram a pior das insuficiências: um animal
[sagrado tentando escapar da areia movediça.

não adivinho mais o alinhamento do teu rosto – e eu
[era especialista nisto.
“tenho ânsia desmedida de te contar a minha história”, tu
dizias.
e para espanto de ambos, descobrimos que fui a mesa
    [na qual esteve a cesta dos pães que te alimentaram
 [durante a infância, que foste a cama que sustentou
[as primeiras grandes elaborações do meu
[inconsciente.

herdamos (da prudência? do medo? da aceitação do fim?)
[aquela indiferença brutal de levantar rochas
        [mentalmente com um único objetivo: o de soltá-las
[(não sem alguma hesitação) em cima dos musgos
           [capazes de amaciar os nossos traseiros e nos colocar
[novamente um de frente para o outro.

preciso admitir: tens tido mais sucesso do que eu.
preciso perguntar: desde quando tens também tanta
[intimidade com os minerais?
preciso transcrever uma indagação ontológica
[cosmológica imemorial: como ousas
        [esmagar a beleza em nome da beleza?

tento colocar entre nós o espelho duplo deus/humano
tento mostrar que os afrescos nos pertencem mutuamente
os murais estarem divididos não significa que as crianças,
    [o bosque, a ponte, as árvores floridas sejam realidades
        [apenas tuas. Não significa que as serpentes, o lodo, a
     [lua, os peixes escuros sejam realidades apenas minhas.
mas para alguém que escreve tantas derivações da
     [palavra “tentativa”, e para alguém que ignora
        [todas as formas que tal palavra toma mesmo
[debaixo de escombros, não haveria outro
[destino além do fracasso:
continuamos sentados um de costas para o outro.

Isadora Krieger, em “Explorações cardiomitológicas”, editora da casa, 2019

4 de fev. de 2021

covarde divina criança daninha

"Lilya" de Rogerio Moreira
 

Hino à beleza

Vens tu do céu profundo ou sais do precipício,
Beleza? Teu olhar, divino mas daninho,
Confusamente verte o bem e o malefício,
E pode-se por isso comparar-te ao vinho.

Em teus olhos refletes toda a luz diuturna;
Lanças perfumes como a noite tempestuosa;
Teus beijos são um filtro e tua boca uma urna
Que torna o herói covarde e a criança corajosa.

Provéns do negro abismo ou da esfera infinita?
Como um cão te acompanha a Fortuna encantada;
Semeias ao acaso a alegria e a desdita
E altiva segues sem jamais responder nada.

Calcando mortos vais, Beleza, a escarnecê-los;
Em teu escrínio o Horror é joia que cintila,
E o Crime, esse berloque que te aguça os zelos,
Sobre teu ventre em amorosa dança oscila.

A mariposa voa ao teu encontro, ó vela,
Freme, inflama-se e diz: “Ó clarão abençoado!”
O arfante namorado aos pés de sua bela
Recorda um moribundo ao túmulo abraçado.

Que venhas lá do céu ou do inferno, que importa,
Beleza! Ó monstro ingênuo, gigantesco e horrendo!
Se teu olhar, teu riso, teus pés me abrem a porta
De um infinito que amo e que jamais desvendo?

De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,
Que importa, se és quem fazes – fada de olhos suaves,
Ó rainha de luz, perfume e ritmo cheia! –
Mais humano o universo e as horas menos graves?



O gato

Vem cá, meu gato, aqui no meu regaço;
Guarda essas garras devagar,
E nos teus belos olhos de ágata e aço
Deixa-me aos poucos mergulhar.

Quando meus dedos cobrem de carícias
Tua cabeça e o dócil torso,
E minha mão se embriaga nas delícias
De afagar-te o elétrico dorso,

Em sonho a vejo. Seu olhar, profundo
Como o teu, amável felino,
Qual dardo dilacera e fere fundo,

E, dos pés à cabeça, um fino
Ar sutil, um perfume que envenena
Envolvem-lhe a carne morena.


Charles Baudelaire, “As flores do mal”, tradução de Ivan Junqueira 


24 de jan. de 2021

desejos

Lilya Brik e Vladimir Maiakovski
 


hoje gostava:

andar de mão dada contigo

numa praia luminosa

sem dizer nada.


Paulo Condessa, O céu dentro da boca