Micheliny Verunschk, O som do rugido da onça. São Paulo, Companhia das letras, 2021.
Insólitos enredos
26 de out. de 2021
escutar as vozes
22 de mar. de 2021
o antes o depois o agora
OS ANOS NOVENTA
você não estava lá nas coisas mais decisivas da minha vida
mas é assim mesmo: historiadores e arqueólogos
nunca estiveram presentes para testemunhar
os acontecimentos isso fazem os jornalistas e os
videntes você era apenas um menino quando
kurt cobain morreu nem poderia ainda saber o dano
que causaria sua existência de crisálida taurino e
primaveril quando meu destino cruzasse com o seu
e andaríamos de mãos dadas e suando verão afora
como se fosse o primeiro (e era) berlim não era
tão esplendorosa quanto seus cachos jakob mas você
nunca soube o que foi ter 16 anos em recife na década
de noventa FHC presidente desemprego torneiras secas
filariose cólera sem vale do rio doce mas tinha chico science
abril pro rock o pior é agora não tem berlim não tem recife
não tem chico science não tem kurt cobain nem você mas FHC
ainda tem
O CAVALO #2
tu vai embora
e leva tudo o que é
meu e teu a galope
contigo
o que sobra é
writer`s block
e as camisinhas pra jogar
fora que deixo no chão
como se fossem filhos
que não quero expulsar
da casa pra lembrar do pai
e se eu não tivesse mil anos
e fosse fértil seria linda
a linhagem de puro-sangue
seus filhos os potros
que eu-égua teria parido
você vai embora e
não fica nada além
do cheiro de estábulo
limpo um misto empoeirado
de saudade e alívio
METALINGUAGEM
antes de dormir olho as 207 fotos da sua
conta no facebook porque as memórias
que tenho de você já não são mais suficientes
e porque você não manda nudes não importa
o quanto eu peça já não bastam mais as fotos
que consegui stalkear em contas de tumblr
desativadas nem me bastam as fotos da sua cara
que juntei arqueóloga de tweets de 2002 e em posts
de blogs mortos me bastam menos ainda
as 26 fotos que fiz de você enquanto você escovava
clandestino os dentes da minha casa na minha
cara nada me basta eu quero testemunhas sua existência
em tempo real quero ver sua cara a cinco centímetros
da minha fazer fotos disso você tão perto ilegal
você aqui.
16 de fev. de 2021
contornos atemporais
11 de fev. de 2021
devoções incertas
Isadora Krieger, “Explorações cardiomitológicas”, editora da casa, 2019
9 de fev. de 2021
dois animais sa(n)grados
estamos sentados um de costas para o outro
as pernas dobradas, as mãos nos limites das próprias mãos
monges preguiçosos em estado de sonolência,
[inspirando e expirando o ar tóxico – da covardia?
O ancestral conflito entre o palco e a caverna
Mas não, este nunca foi o nosso principal embate.
[já havíamos iniciado o exaustivo trabalho de
[tirar as milhares de lâmpadas do palco e de
[tentar acendê-las na caverna.
agora tudo se resume às nossas novas posições, que por
[mais ilusórias que possam ser, e talvez exatamente
[por isto, geram a pior das insuficiências: um animal
[sagrado tentando escapar da areia movediça.
não adivinho mais o alinhamento do teu rosto – e eu
[era especialista nisto.
“tenho ânsia desmedida de te contar a minha história”, tu
dizias.
e para espanto de ambos, descobrimos que fui a mesa
[na qual esteve a cesta dos pães que te alimentaram
[durante a infância, que foste a cama que sustentou
[as primeiras grandes elaborações do meu
[inconsciente.
herdamos (da prudência? do medo? da aceitação do fim?)
[aquela indiferença brutal de levantar rochas
[mentalmente com um único objetivo: o de soltá-las
[(não sem alguma hesitação) em cima dos musgos
[capazes de amaciar os nossos traseiros e nos colocar
[novamente um de frente para o outro.
preciso admitir: tens tido mais sucesso do que eu.
preciso perguntar: desde quando tens também tanta
[intimidade com os minerais?
preciso transcrever uma indagação ontológica
[cosmológica imemorial: como ousas
[esmagar a beleza em nome da beleza?
tento colocar entre nós o espelho duplo deus/humano
tento mostrar que os afrescos nos pertencem mutuamente
os murais estarem divididos não significa que as crianças,
[o bosque, a ponte, as árvores floridas sejam realidades
[apenas tuas. Não significa que as serpentes, o lodo, a
[lua, os peixes escuros sejam realidades apenas minhas.
mas para alguém que escreve tantas derivações da
[palavra “tentativa”, e para alguém que ignora
[todas as formas que tal palavra toma mesmo
[debaixo de escombros, não haveria outro
[destino além do fracasso:
continuamos sentados um de costas para o outro.
4 de fev. de 2021
covarde divina criança daninha
Hino à beleza
Vens tu do céu profundo ou sais do precipício,
Beleza? Teu olhar, divino mas daninho,
Confusamente verte o bem e o malefício,
E pode-se por isso comparar-te ao vinho.
Em teus olhos refletes toda a luz diuturna;
Lanças perfumes como a noite tempestuosa;
Teus beijos são um filtro e tua boca uma urna
Que torna o herói covarde e a criança corajosa.
Provéns do negro abismo ou da esfera infinita?
Como um cão te acompanha a Fortuna encantada;
Semeias ao acaso a alegria e a desdita
E altiva segues sem jamais responder nada.
Calcando mortos vais, Beleza, a escarnecê-los;
Em teu escrínio o Horror é joia que cintila,
E o Crime, esse berloque que te aguça os zelos,
Sobre teu ventre em amorosa dança oscila.
A mariposa voa ao teu encontro, ó vela,
Freme, inflama-se e diz: “Ó clarão abençoado!”
O arfante namorado aos pés de sua bela
Recorda um moribundo ao túmulo abraçado.
Que venhas lá do céu ou do inferno, que importa,
Beleza! Ó monstro ingênuo, gigantesco e horrendo!
Se teu olhar, teu riso, teus pés me abrem a porta
De um infinito que amo e que jamais desvendo?
De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,
Que importa, se és quem fazes – fada de olhos suaves,
Ó rainha de luz, perfume e ritmo cheia! –
Mais humano o universo e as horas menos graves?
O gato
Vem cá, meu gato, aqui no meu regaço;
Guarda essas garras devagar,
E nos teus belos olhos de ágata e aço
Deixa-me aos poucos mergulhar.
Quando meus dedos cobrem de carícias
Tua cabeça e o dócil torso,
E minha mão se embriaga nas delícias
De afagar-te o elétrico dorso,
Em sonho a vejo. Seu olhar, profundo
Como o teu, amável felino,
Qual dardo dilacera e fere fundo,
E, dos pés à cabeça, um fino
Ar sutil, um perfume que envenena
Envolvem-lhe a carne morena.
Charles Baudelaire, “As flores do mal”, tradução de Ivan Junqueira
24 de jan. de 2021
desejos
hoje gostava:
andar de mão dada contigo
numa praia luminosa
sem dizer nada.
Paulo Condessa, O céu dentro da boca