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1 de dez. de 2009

outra jogada

XADREZ PROFUNDO

A própria vida como um campeonato de xadrez
                                              duelo de soturnos jogadores
                 num campo quadriculado
                                     em que só você tem
                 um tempo limitado
                                      pra cada jogada
E o teu relógio está andando
                                             o tempo todo
          se você demora
                                    demais
                                               num lance
                esse tempo será descontado
                                                              do resto
                                    da tua vida
E o teu adversário
                            escuro ou claro
             (que pode ou não ser
                                              a própria vida)
te sacando com seus olhos fundos
     ou indecentemente retorcendo as sobrancelhas loucas
       ou soprando fumaça na tua cara
          ou cruzando e descruzando as pernas dele
                                                                    ou dela
ou qualquer coisa assim
      agindo como um deus insolente e invulnerável
                                                     invencível
           capaz de ler tua mente & coração
E uma jogada apressada
                                       pode ser o teu fim
   pois você tem que jogar
                                        xadrez profundo
   (como a única partida profunda que Spassky ganhou de Fisher)
E se a sua abertura descuidada
                                                 não foi muito brilhante
        tem que jogar pra ganhar não basta o empate
              e de repente descobrir
                                               uma nova variante Nabokov
E então derrubá-lo por fim
                      com um ataque final
                                     que ninguém jamais sonhou

E ainda há tempo –
                               Tua vez

Lawrence Ferlinghetti
em Vida sem fim

28 de nov. de 2009

os pagantes

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Eclesiastes

Tempo de foder
tempo de não foder
saber gerir
os tempos
compor
saber estar sozinha
para saber estar contigo
e vice-versa
aqui estão as minhas contas
do que foi

Adília Lopes

27 de nov. de 2009

fresta

Adormecer
(com algumas coisas de Maria Tereza Horta)

Preciso de te tocar
caule
gato
corda
mão
abraço-te
a tua roupa
tu
não te divulgo
o teu nome
os teus olhos azuis
a tua gentileza
espero que os partilhes
com alguém querido
como os partilhaste
comigo
amante querido
que não perco
que não deito fora
os meus amantes
não são Gillettes
(não são de usar
e deitar fora)
embora eu seja
uma poetisa pop
e não tenha amantes
gosto de adormecer
a lembrar-me de ti
de como me sorrias
de como me olhavas
se os meus poemas
contribuíram para isso
são excelentes

Adília Lopes

8 de nov. de 2009

guerra


Dois bigodes me assombram. As listras do tigre são artifícios do medo. O medo que o tigre sente e provoca. Será esse medo o que causa tanta leveza? Um medo-movente. Passo leve, atenção ao menor ruído, o disfarce, a indiferença, o corpo tensiona, se arma, dá o bote. Dente na carne, fina marca. O medo transformado em raiva.

eh


7 de nov. de 2009

mia em malaio

   

Os tigres não querem as ruas calçadas. Os tigres precisam tocar suas patas no chão, na areia, no barro, na grama. Tigres não compreendem a velocidade das máquinas, querem estar em paz com suas listras e seus bigodes, querem apenas um canto tranqüilo pra deitar sob sol, um tronco áspero para afiar suas garras, água corrente para aplacar sua sede. O tigre da Sumatra é apenas uma subespécie em extinção, mas ainda é um tigre, conserva sua nobreza e dignidade. Há certos tigres que sabem o momento de dar as costas, se coçam para demonstrar sua indiferença e fecham seus ouvidos quando se cansam da conversa. Havia um tigre que paralisava feito estátua e fingia não estar ali. O tigre amacia o ninho antes de deitar, sem pressa e com prazer. Dizem que alguns tigres têm a faculdade de prever os fatos, e aceitam a sina, sentem a velocidade passar em silêncio.

eh

24 de out. de 2009

poética


Analogia
            Talvez convenha voltar uma vez mais à interrogação que aponta em cheio para o mistério poético. Por que toda poesia é fundamentalmente imagem, por que a imagem se destaca no poema como o instrumento encantatório por excelência? Gaetan Picon alude a uma “relação privilegiada do homem com o mundo”, que a experiência poética nos levaria a suspeitar e nos revelaria. Não pouco privilegiada, na verdade, uma relação que permite sentir próximos e conexos elementos que a ciência considera isolados e heterogêneos; sentir, por exemplo, que beleza = encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura (Lautréamont). Mas, observando melhor, na realidade é a ciência que estabelece relações “privilegiadas” e, em última análise, alheias ao homem que tem de incorporá-las pouco a pouco e por aprendizagem. [...]
Os fatos são simples: de certo modo, a linguagem íntegra é metafórica, referendando a tendência humana para a concepção analógica do mundo e o ingresso (poético ou não) das analogias nas formas da linguagem. Essa urgência de apreensão por analogia, de vinculação pré-científica, nascendo no homem desde as primeiras operações sensíveis e intelectuais, é o que leva a suspeitar uma força, uma direção do seu ser para a concepção simpática, muito mais importante e transcendente do que todo racionalismo quer admitir. Essa direção analógica do homem, superada pouco a pouco pelo predomínio da versão racional do mundo, que no Ocidente determina a história e o destino das culturas, persiste em diversos estratos e com diversos graus de intensidade em todo indivíduo. Constitui o elemento emotivo e de descarga da linguagem nos diversos falares, desde o rural e o suburbano, até a língua culta, as formas-clichê da comunicação oral cotidiana, e, em último termo, a elaboração literária de grande estilo – a imagem luxuosa e inédita, roçando a  esfera poética ou já em cheio nela. Sua permanência e frescor invariáveis, sua renovação que todos os dias em milhões de formas novas agita o vocabulário humano no fundo do cadinho chamado terra, acentua a convicção de que, se o homem se ordena, se comporta racionalmente, aceitando o juízo lógico como eixo da sua estrutura social, ao mesmo tempo e com a mesma força (embora essa força não tenha eficácia), se entrega à simpatia, à comunicação analógica com o ambiente. O mesmo homem que julga, racionalmente, que a vida é dolorosa, sente o obscuro prazer de enunciar esse fato com uma imagem: a vida é uma cebola, que é preciso descascar chorando.
            Então, se a poesia compartilha e leva ao extremo esta premência analógica comum, fazendo da imagem o seu eixo estrutural, a “lógica afetiva” que, ao mesmo tempo, a arquiteta e habita; e se a direção analógica é uma força contínua e inalienável em todo homem, não será hora de descer da consideração somente poética da imagem à busca da sua raiz, esse algo que subjaz e assoma à vida junto com a cor de nossos olhos e nosso grupo sanguíneo? [...]

Interlúdio mágico
[...]
            A evolução racionalizante do homem foi eliminando progressivamente a cosmovisão mágica, substituindo-a pelas articulações que ilustram toda a história da filosofia e da ciência. Em planos iguais (pois ambas as formas de conhecimento, de desejo de conhecimento, são interessadas, visam ao domínio da realidade) o método mágico foi gradualmente desalojado pelo método filosófico-científico. O antagonismo evidente entre ambos ainda hoje se traduz em restos de batalha, como a que travam o médico e o curandeiro, mas é evidente que o homem renunciou quase que totalmente a uma concepção mágica do mundo para fins de domínio. Permanecem as formas aberrantes, as recorrências próprias do inconsciente coletivo que encontra saídas isoladas na magia negra ou branca, nas simbioses com superstições religiosas, nos cultos esotéricos nas grandes cidades. Mas a escolha entre a bola de cristal e o doutorado em letras, entre o passe magnético e a injeção de estreptomicina, está definitivamente feita.  
 [...]

Cortázar
"Para uma poética" em Valise de cronópio

17 de out. de 2009

desejos


ELEGIA

Eu agora escrevo em preconcepções
Aquelas de sexo e cordas
Muitos frêmitos violentos ocorrem à carne da
            imaginação
E a imaginação tem em verdade carne a destruir
E a carne tem imaginação a lacerar
A boca é apenas um corpo preenchido de imaginação
Você pode imaginar seus conteúdos
O gotejar a um balde
E seus atos
As elipses e encadeamento à parte
A pluma
O expectador

A imaginação, vazia, nada possui que a confirme
Há apenas o cantar dos pássaros
Os sons do grito original
Estranho exemplo
A imaginação deseja ser abraçada pela liberdade
Esvazia-se para que seja desejada
Mas a imaginação precisa da observância à carne
            em resposta – seus incrementos de vigilância – uma
            progressão vagarosa
Precisa ser bela e não consegue libertar-se


Lyn Hejinian
em tradução de Ricardo Domeneck para Modo de usar & Co.

13 de out. de 2009

mil planos


Os projetos

                Sozinho, passeando em um grande parque, ele dizia para si mesmo: “Como ela ficaria bela em seu vestido real, complicado e faustoso, descendo, através da atmosfera de uma bela tarde, os degraus de mármore de um palácio, diante de gramados e laguinhos! Porque ela tem, naturalmente, o ar de uma princesa.”
                Passando, mais tarde, por uma rua, ele parou diante de uma loja de gravuras e encontrando numa pasta uma estampa representando uma paisagem tropical, se disse: “Não! Não é num palácio que eu desejaria possuir sua querida vida. Nós não estaríamos em casa. Porque em suas paredes incrustadas de ouro não haveria lugar para pendurar o seu retrato; naquelas solenes galerias não existiriam recantos para nossa intimidade. Decididamente, é lá que é preciso ficar para cultivar o sonho de minha vida.”
                E, analisando com os olhos todos os detalhes da gravura, ele continuou, mentalmente: “À beira-mar, uma bela cabana de madeira, cercada por todas essas árvores bizarras e luminosas das quais me esqueço os nomes..., na atmosfera um odor inebriante, indefinível... na cabana, um perfume de rosas e almíscar. Mais longe, atrás de nosso pequeno domínio, as pontas de mastros dos botes oscilando com as ondas... em volta de nós, além do quarto iluminado por uma luz rósea tamisada pelas cortinas, decoradas com esteiras frescas e flores capitosas com algumas cadeiras de rococó português, de uma madeira pesada, tenebrosa (onde ela repousaria, calmamente, refrescando-se e fumando um tabaco levemente opiáceo!); além do terraço, a gritaria de pássaros embriagados pelas luzes e a tagarelagem das negrinhas... e à noite, para servir de acompanhamento a meus sonhos, o canto lamentoso de árvores musicais, de melancólicas casuarinas. Sim, na verdade, é bem este cenário que eu procurava. Que faria eu com um palácio?”
                E, mais adiante, como ele seguisse por uma grande avenida, vislumbrou um albergue asseado onde, de uma janela alegrada por cortinas indianas multicores, penduravam-se duas cabeças sorridentes. E, logo a seguir: “É preciso”, disse para si, “que meu pensamento seja um grande vagabundo para ir procurar tão longe o que está perto de mim. O prazer e a felicidade estão no primeiro albergue encontrado, no albergue do acaso, tão fecundo e voluptuoso. Uma lareira, fainças vistosas, um jantar passável, um vinho rude e um leito muito largo com lençóis um pouco ásperos, mas frescos; o que há de melhor?”
                E voltando para casa sozinho àquela hora onde os conselhos da sabedoria não são mais abafados pelo burburinho da vida exterior, ele se disse: “Tive hoje, em sonho, três domicílios onde encontrei prazeres iguais. Por que obrigar meu corpo a mudar de lugar se minha alma viaja tão rapidamente? De que serve a execução de projetos, posto que o projeto, em si, é já um gozo suficiente?”

Charles Baudelaire
(Pequenos poemas em prosa, ed. Record, p.137)

6 de out. de 2009

recorrência

       Nunca terei pois uma diretriz, pensava meses depois de casada. Resvalo de uma verdade a outra, sempre esquecida da primeira, sempre insatisfeita. Sua vida era formada de pequenas vidas completas, de círculos inteiros, fechados, que se isolavam uns dos outros. Só que no fim de cada um deles, em vez de Joana morrer e principiar a vida noutro plano, inorgânico ou orgânico inferior, recomeçava-a mesmo no plano humano. Apenas diversas as notas fundamentais. Ou apenas diversas as suplementares, e as básicas eternamente iguais?
       Era sempre inútil ter sido feliz ou infeliz. E mesmo ter amado. Nenhuma felicidade ou infelicidade tinha sido tão forte que tivesse transformado os elementos de sua matéria, dando-lhe um caminho único, como deve ser o verdadeiro caminho. Continuo sempre me inaugurando, abrindo e fechando círculos de vida, jogando-os de lado, murchos, cheios de passado. Por que tão independentes, por que não se fundem num só bloco, servindo-me de lastro? É que eram demasiado integrais. Momentos tão intensos, vermelhos, condensados neles mesmos que não precisavam de passado nem de futuro pra existir. Traziam um conhecimento que não servia como experiência - um conhecimento direto, mais como sensação do que como percepção. A verdade então descoberta era tão verdade que não podia subsistir senão no seu recipiente, no próprio fato que a provocara. Tão verdadeira, tão fatal, que vive apenas em função de sua matriz. Uma vez terminado o momento de vida, a verdade correspondente também se esgota. Não posso moldá-la, fazê-la inspirar outros instantes iguais. Nada pois me compromete.
       No entanto a justificação de sua curta glória talvez não tivesse outro valor senão o de lhe dar certo prazer de raciocínio, assim como: se uma pedra cai, essa pedra existe, essa pedra caiu de um lugar, essa pedra... Ela errava tanto.



Clarice Lispector
em Perto do coração selvagem

5 de out. de 2009

Ação

Ela acorda cedo aberta ao estupro. Não é assim que faz o coelho, os roedores em geral, os soldados em tempo de guerra? Ela muda depressa e agora é um alexandrino acentuado em u. Ela pensa em mudar o emprego, em mudar o emprego da língua, ela pensa em cantar o Hino Nacional. Ela viu na televisão um condor que não sente as próprias asas. Ela viu como fazem os répteis e o saci. A natureza é linda e variada. Ela sonha em se casar com várias espécies de homens. Ela sonha com bichos que dançam e fazem um ruído próprio no acasalamento. Ela gosta de olhar a pista de patinação no gelo. A terra é redonda, nada é muito longe. Ela não pensa em viajar. Ela está exausta e só pensa em ser feliz. Ela não está nem aí. Ela quer saber sobre as estrelas, sobre coisas mortas que brilham há zil anos. Ela quer saber como Lázaro adoeceu de repente. Ela quer mais açúcar, mais beleza. Ela quer sair daqui. Ela vai até o banheiro. Ela volta. Ela mente um pouco. Ela muda de roupa. O dia termina. Ela abre o leite, parece azedo. Ela engole.

Laura Erber
em Vazados e molambos

29 de set. de 2009

ventos uivantes


HISTÓRIA DE DETETIVE

Para quem está sempre numa paisagem estranha,
A rua irregular do vilarejo, a casa escondida entre as árvores,
Tudo perto da igreja, ou a escura casa geminada,
Ou a outra com colunas coríntias, ou cada
Apartamento proletário: em todo caso
Um lar, o centro onde as três ou quatro coisas
Que costumam acontecer a alguém, acontecem? Sim,
Quem não pode desenhar o mapa de sua vida, a sombra
Na pequena estação onde ele cruza suas amantes
E diz adeus continuamente, e repara no local
Onde o cadáver de sua felicidade foi descoberto?
Uma mendiga desconhecida? Um homem rico? Sempre um enigma
E com um passado enterrado mas quando a verdade,
A verdade sobre nossa felicidade é revelado
Quanto ficou devendo à chantagem e ao adultério.
O resto é tradicional. Tudo segue um plano:
A intriga entre o senso comum local
E aquela exasperante e genial intuição
Que está sempre no local, por acaso, antes de nós;
Tudo segue um plano, a mentira e a confissão,
Até a perseguição emocionante no fim, o tiro.
Mas até a última página uma dúvida paira :
E o veredito, foi justo? O nervosismo do juiz,
Aquela pista, o protesto das tribunas,
E até nosso sorriso … pois é . . .
O tempo todo matamos o tempo. Alguém tem que pagar
Pela perda de nossa felicidade: ela mesma.



W. H. Auden
traduzido por Rodrigo Garcia Lopes

26 de set. de 2009

primavera, enfim

S.

Dia azul. Um tajá sagitado. Orquídeas - A porta grande de vidro se abre ao jardim - As linhas da sala perpassam os acúleos dos céreos. Areia. Grama. Uma pedra cortada em cubo. Entre um Lüpertz, entre um Rothenberg, o homem esmaga o cigarro na alpaca do cinzeiro e pensa no diz azul que se abre como um livro, como uma flor, como uma ferida. Pensa no esquilo e no gato de Creeley. Pensa no que fazer com o cadáver da mulher sobre o estofo vermelho.

Francisco dos Santos
em A imagem recorrente

22 de set. de 2009

equívocos secundários, terciários...

Entrar na dimensão do erro fatal. Uma fome sem fim. Acúmulo de atos estúpidos. Ir ao máximo do egoísmo conduz ao abandono? Marcar a carne. Todas as transformações impulsionadas por aquele lapso. Confiar exclusivamente na incapacidade da razão e deixar-se rir. Foi mesmo uma anedota. E tudo completamente diferente agora, por trás desta máscara de couro. Sou quem obedece. Cumpro meu papel no jogo. Espero os dias. Curar torsão, contusão, hematoma, dermatite. Estou em dois lugares, dois corpos, mas ainda há espaço demais. Gravar na carne e deixar cair um pedaço a mais. Não existe alma nenhuma aqui, só sangue quente pulsando.

eh 

20 de set. de 2009

muitas direções. um passo.

Tantas gerações nos antecederam, tanto saber foi maior que a ciência, tanto afeto e ópio fizeram acreditar no homem, tanta morte gloriosa coroou a convicção, tanta morte violenta conferiu realidade à combinatória das piores probabilidades, tantas cabeças cortadas e enroladas em verso metrificado e no fluxo informe do bom senso, tanta arbitrariedade e tanta sutileza reunidas no fio do relho e da frase tensa, tanta chuva e tanta laranja, e com as mãos secas, aqui estamos — nus, mudos, indigentes, como se tivéssemos acabado de nascer. Nosso pecado de origem foi o de não ter nascido antes, antes da história, antes da conversa, antes do banho. Giramos em torno de tudo, até que tudo passe a girar em torno de nós e refaça a sangrenta marcha na direção do passado. (Hoje dispensei os chinelos, desci descalço na direção da porta do prédio. Tudo me levava à comunhão com o solo, a um espírito de precisão. Mas nunca na sola dos pés percebeu-se um tamanho embaraço. E a razão do próximo passo feriu-se à sombra amarela da repetição. Olhei bem direto no metal e no vidro da porta, queria derretê-los, mas minha força se dividiu em duas. Uma delas partiu em direção à rua, levando o lixo, fiel à sua humana pista, e desfez-se, pó de dias. A outra aqui ficou, ciência sem método, acumulação sem dono, direção sem rumo.) O que esperam é que os leve pela mão e sirva o café ou que a ambigüidade os libere do desconforto do sentido. Os que chegarem a tempo, verão. E nada além de uma prosa, limpa prossegue.

Marcos Siscar

18 de set. de 2009

dois quintos


A deseducação dos cinco sentidos

Paladar

            Minha mulher briga comigo por eu comer rápido, fazendo feio quando temos visita. E nunca terei coragem de explicar o porquê disso.
            Ela se irrita por eu não me preocupar com o cardápio e não ter preferência por bebidas. Comer é, para mim, uma necessidade. Mais nada.
            Suas manias gastronômicas me são indiferentes, sento à mesa com pressa, geralmente deixo o computador ligado no escritório e, mal encho o prato – coloco sempre uma única vez, para não perder tempo -, me atiro com voracidade sobre aquele monte de vitaminas e calorias que não me excita nem me alegra. Jamais toco nas sobremesas, nem bebo sucos ou refrigerantes. Gosto de água, tomada depois da refeição. Encho a boca, movimento o conteúdo entre os dentes, e engulo. Viro em seguida o restante e, esteja quem estiver à mesa, peço licença para voltar ao escritório. Pode parecer gulodice ou mania de trabalhar, mas é apenas defeito de formação.
            Na infância de menino de rua, antes de ser adotado, eu comia o que encontrava pela frente. Freguês cativo das latas de lixo, engolia rapidamente, para não correr o risco de ser roubado pelos outros, tudo que tivesse qualquer parentesco com comida. Engolia sem mastigar. Foi assim que me mantive vivo, educando minha boca para ignorar o sabor forte das coisas estragadas.
            Não culpo minha mulher por censurar este meu costume. Ela não sabe nada de meu passado e sempre teve uma vida decente. Como dizer a ela que mesmo seus pratos mais requintados me trazem à lembrança a lavagem servida aos porcos?


Tato

            De tanto trabalhar no serviço pesado, minhas mãos viraram dois cascos. Não consigo mais pegar coisas pequenas e delicadas. Elas perderam as habilidades suaves, embora eu possa segurar brasas vivas. É impossível, no entanto, catar uma agulha caída no chão. E quando toco em tecido fino, ele se gruda em meus calos.
            Isso me impede de soletrar a Palavra de Deus, porque toda vez que tento folhear a bíblia, os dedos machucam o papel fino e não consigo virar a página. A mão do homem não foi feita apenas para aplainar o cabo das ferramentas.
            Às vezes saio a noite em busca de companhia. Levo alguma mulher para hotéis de programa. Ela arranca a roupa, apago a luz e tento entender seu corpo. Minhas mãos não sentem a pele e as curvas. Passam cegas sobre os contornos. É como uma lixa alisando madeira. Se tento ler os seios, apenas percebo uma saliência sem forma que não me excita. Geralmente me alivio ligeiro.
            Em verdade, a vida me tirou as mãos e no lugar deixou dois instrumentos de trabalho que desconhecem o alfabeto do tato.

Miguel Sanches Neto

15 de set. de 2009

claro


Cicerone cego


[...]


A insônia muitas vezes é um tipo de lucidez às três da madrugada onde nos engolfa não aos borbotões, mas incisiva e parcimoniosamente a explicação de tudo. O mover-se na terrena. O que não evita a estranheza, um extenuar-se, alma-neurônio, ou o que nos dois pensa que alcança. Posso falar para os fantasmas, já que fisiologicamente ninguém me acompanha.
            O mapa-intestinal que sonhei lograr desimporta. Toda cidade é uma mesma cidade. O que somos (?) não deixará de ser se muda a paisagem. Tendo, apesar de cego, a buscar postos privilegiados de observação, na cobertura onde estou percebo toda a baía e grande parte da costa. O café com conhaque acalenta. Ah... o silêncio é um deleite.
            Lucidez, insônia não quer dizer apenas razão. O neurônio é uma metafísica. O que massacra o megalômano é saber que o universo é indestrutível. E esse clarão, que pode ser cegante, mas suportável, amplia-se na noite a partir do seu corpo que tem fome e sede, estende a mão come e bebe, e é agora e ontem o primeiro e o último homem e todo o intervalo entre. É pleno, talvez beire o delírio, mas é agudo demais pra ser irreal. Esta explicação de tudo, que até a ânsia da síntese e o relatar esta ânsia se torna dispensável. E o niilismo aí não se dá, apenas a constatação sem renúncia, covardia ou omissão de que o vento basta. A hora menos pior é a que precinde de signo, porque a sede do signo é insaciável.

***



           
        O senhor também concorda? Realmente, nas ruminações com o travesseiro somos sérios e quantas vezes fatalistas. Por ali.




João Filho

13 de set. de 2009

elos

O vento e eu somos ligados pela vida porque nós nos amamos nós nos amamos por que nós nos amávamos por que passamos noites inteiras juntos falando sobre o Dique do mar, no hotel Belle-Vue, em Petite-Synthe, nos nossos quartinhos, na redoma dos nossos carros, nos acostamentos e nas pequenas estradas de Creuse e de Ardèche, nos oferecendo presentes, nos oferecendo sentimentos e coragem, preparando a guerra, porque nós éramos dois combatentes noturnos, sua dureza, minha loucura, minha dureza, sua precisão, porque nós estávamos sozinhos no mundo nas ruas frias de Dunkerque, porque nós não podíamos nos separar, que andávamos milhares de quilômetros para nos encontrar, para se rever, para se ver uma noite, porque nós não podíamos falar a não ser nos falar, porque nós não podíamos amar a não ser nos amar, porque nós escrevíamos, porque trocávamos nossas queixas, nossas perdições, nossas crenças, nossas fés, nossas tripas, nossos endereços, nossos discursos, nossos ensaios, nossos rascunhos, nossos sangues, nossas cobertas e nossos poemas.


C. Tarkos
(em tradução de Heitor Ferraz)

12 de set. de 2009

como se chama


Um beijo. Eles se beijam. Ele toma sua boca em sua boca, ela toma sua boca em sua boca, eles se beijam. Ele abre seus lábios à sua boca, à sua língua, ela abre seus lábios aos seus lábios, à sua boca, à sua língua, ela gira sua língua em sua boca, ele gira sua língua em sua boca, ele descobre seu beijo, ela descobre a sensação de seu beijo, sua língua doce em sua boca, sua língua doce contra sua língua, ele envolve sua língua em sua língua, ele a mistura, ela gira sua língua contra sua língua, eles se beijam, ela a mistura, eles se misturam, ela cede sua boca à sua boca, eles se dão um beijo, ela lhe dá um beijo e sua língua, ele acaricia sua língua em sua boca, ela acaricia sua língua em sua boca, ela o deixa entrar, eles se amam, sua língua está em sua boca, ela mete sua língua em sua boca, seus lábios estão colados contra seus lábios, ela acaricia sua língua contra sua língua que gira em sua boca contra sua língua, acaricia sua língua contra sua língua quente e oferecida, ele mete sua língua em sua boca, e então eles se amam, eles se beijam.

C. Tarkos 
(tradução de Masé Lemos)

9 de set. de 2009

zunido

A VOZ DO SANGUE, O SANGUE DA VOZ


Tanto silêncio no ringue, no ringue
e na fome, tanto burburinho zoando simultaneamente,
que não posso distingui-los. E mesmo antes dos golpes
na cabeça, e mesmo antes de qualquer golpe
revolvendo as entranhas pelo avesso
(antes dos 4.500 quilos por impacto), e, mesmo antes,
tanto silêncio no ringue, no ringue
e na fome, tanto burburinho zoando
simultaneamente, que não posso distingui-los.
O ringue é o ringue, a fome é a fome, mas no ringue
(como na fome, como na fome do ringue, como no ringue
da fome), o silêncio é silêncio e burburinho,
e o burburinho, burburinho e silêncio. Quando,
no canto do amparo – sentado, curativos imediatos,
os segundos trabalhando a meu favor, a respiração em busca
de um ponto pacífico –, ouço a voz nítida do treinador
se erguendo do alarido da multidão e de ninguém,
não a escuto como um mandamento: infiel
e pecador, poderia traí-la. Escuto essa voz
desenrolar as últimas ataduras que envolvem o punho
do meu coração, espremê-lo ao sumo,
ao ponto de o gosto do sangue (de o gosto da fome) brotar compri-
mindo as gengivas por entre os dentes e o protetor,
me dando a certeza de que o próximo soar do gongo
será o último badalo com o qual meu adversário sonhará
antes de beijar a encardida lápide da lona.


Alberto Pucheu

8 de set. de 2009

colher


La antología de poemas llega
por correo.
La trae un enano en una cajá de cartón.
Mis amigas y yo no fuimos seleccionadas.
La poesia latinoamericana es por completo un fracaso;
no es como girar o hacer el amor.
Leeremos otra cosa, o le pondremos droga al té.
En un acto de justicia quemaremos el libro,
ahora el estado no llenará nuestras carteras
de oro, ni nos darán un pasaje para viajar
gratis por el MERCOSUR.



Cecilia Pavón

4 de set. de 2009

roer


INTRODUÇÃO À ARTE DAS MONTANHAS

Um animal passeia nas montanhas.
Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede,
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
Puxado sempre para cima, o animal é um ímã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,
ainda, que agora tem de aprender a descer.


(De Argumentos Invisíveis, 1995)

JUSTIFICAÇÃO DE DEUS

o que eu chamo de deus é bem mais vasto
e às vezes muito menos complexo
que o que eu chamo de deus. Um dia
foi uma casa de marimbondos na chuva
que eu chamei assim no hospital
onde sentia o sofrimento dos outros
e a paciência casual dos insetos
que lutavam para construir contra a água.
Também chamei de deus a uma porta
e a uma árvore na qual entrei certa vez
para me recarregar de energia
depois de uma estrondosa derrota.
Deus é o meu grau máximo de compreensão relativa
no ponto de desespero total
em que uma flor se movimenta ou um cão
danado se aproxima solidário de mim.
E é ainda a palavra deus que atribuo
aos instintos mais belos, sob a chuva,
notando que no chão de passagem
já brotou e feneceu várias vezes o que eu chamo de alma
e é talvez a calma
na química dos meus desejos
de oferecer uma coisa.


(De Sibilitz, 1981)

Leonardo Fróes

30 de ago. de 2009

La imagen

Hay un punto en que esto y aquello, piedras y plumas, se funden. Y ese momento no está antes ni después, al principio o al fin de los tiempos. No es paraíso natal o prenatal ni cielo ultraterrestre. No vive en el reino de la sucesión, que es precisamente el de los contrários relativos, sino que está en cada momento. Es cada momento. Es el tiempo mismo engendrándose, manándose, abriéndose a un acabar que es un continuo empezar. Chorro, fuente. Ahí, en el seno del existir – o mejor, del existiéndose -, piedras y plumas, lo ligero y lo pesado, nacerse y morirse, serse, son uno y lo mismo.   El conocimiento que nos proponen las doctrinas orientales no es trasmisible en fórmulas o razonamientos. La verdad es una experiência y cada uno debe intentarla por su cuenta y riesgo. La doctrina nos muestra el camino, pero nadie puede caminarlo por nosotros. De ahí la importancia de las técnicas de meditación. El aprendizaje no consiste en la acumulación de conocimientos, sino en la afinación del cuerpo y del espíritu. La miditación no nos enseña nada, excepto el olvido de todas las enseñanzas y la renuncia a todos los conocimientos. Al cabo de estas pruebas, sabemos menos pero estamos más ligeros; podemos emprender el viaje y afrontar la mirada vertiginosa y vacía de la verdad. Vertiginosa en su inmovilidad; vacía en su plenitud. [...] Pensar es respirar. Retener el aliento, detener la circulación de la idea: hacer el vacío para que aflore el ser. Pensar es respirar porque pensamiento y vida no son universos separados sino vasos comunicantes: esto es aquello.  
Octavio Paz. El arco y la lira. p.103.

29 de ago. de 2009

Uma parada. Simples assim.


Paradeiro

Arnaldo Antunes

Haverá paradeiro para o nosso desejo
Dentro ou fora de um vício
Uns preferem dinheiro
Outros querem um passeio perto do precipício
Haverá paraíso
Sem perder o juízo e sem morrer
Haverá pára-raio
Para o nosso desmaio
Num momento preciso
Uns vão de pára-quedas
Outros juntam moedas antes do prejuízo
Num momento propício
Haverá paradeiro para isso?
Haverá paradeiro
Para o nosso desejo
Dentro ou fora de nós?
Haverá paraíso

25 de ago. de 2009

ilumina

The moon had
a cat`s moustache
For a second

A lua ganhou
um bigode de gato,
Por um segundo


Useless, useless,
The heavy rain
Driving into the sea

Inútil, inútil,
pancada de chuva
Em direção ao mar

Jack Kerouac