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21 de jan. de 2010

a expansão das coisas infinitas


CORRESPONDÊNCIAS

A natureza é um templo vivo em que os pilares
Deixam filtrar não raro insólitos enredos;
O homem o cruza em meio a um bosque de segredos
Que ali o espreitam com seus olhos familiares.

Como ecos longos que à distância se matizam
Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.

Há aromas frescos como a carne dos infantes,
Doces como o oboé, verdes como a campina,
E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,

Com a fluidez daquilo que jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.

Charles Baudelaire
(Trad.: Ivan Junqueira)

18 de jan. de 2010

monte muito amplo e alto


As núpcias da Essência e da existência. Vir a ser é assim. Oração para chamar o minotauro, silogismo para pegar no sono. Que tal a fala, que tal você falando? Dizendo o que não sei, ouvindo o que estou cansado de saber? Quer ser eu? Para quê? O que é que vai fazer comigo? Ficar assim? Comunico. Vou embora. Tudo vai embora comigo. Tudo vai ficar sozinho. Mudar de rumo no meio. Alteração permitida. De novo, o espelho. A lei da atração dos espelhos me fixa aqui. Regra dos sólidos. Não me procurem em Euclides. Um giro. Quero mudar. É uma abstração. Pensar. Perguntar interrompe. Trago tudo comigo. Um imperador morre de pé. Tudo é uma questão só. Fiquei sem graça quando acordei dentro de um susto, o sonho foi-se. Só faço as coisas que me deixam fazer. Por exemplo, eu fico. Eu não estou mais adiante. Não adianta. Eu não passei por trás. Não me atraso. Tudo tem muito que crescer ainda. Faz de conta que eu não conto. Dobre a língua, deixe ler. O que você está fazendo aí parado, sei fazer melhor que você. Tenho o condão mesmo quando não há nada para dizer. Melhor. Escreveremos à sombra sobre sombras, sonhando. Lanço uma hipótese, uma pergunta eclipsada por uma resposta. Crio contextos. Faço parte do que eu faço. Desenvolvo uma lógica. O ritmo é a lógica, quando esta se extingue, ponho um ponto final. É a música da carência. Ouvimos em direção ao nada. Perder-se no nada. Abri a porta: nada. Nada dizia nada. O nada no ar. O nada no som. A cidade não era nada. Eu não era nada. Mas eus voltei do nada. Nada tenho a declarar. O nada é o maior espetáculo da terra. Quase ouvir é melhor que ouvir. Faço uma proposta, frase feita por via de uma dúvida: alguém pensou aqui, e não fui eu. O mundo não quer que eu me distraia; distraído, estou salvo. Essa necessidade não é só física; é a necessidade da verdade, a carência de informações, a pobreza dos dados. Não é agradável ser olhado por nós, sai da geografia por meio da história. Faz física e a nega quando filosofia. Aprende errando.


[...]


Arrevensando-se na queda, a pedra heracléia atrai a estátua, estabelecendo afinidades infinitamente próximas do zero da sua igualdade, olha a democracia imperante nessa equação, a atração da gravidade chegou atrasada à extrema gravidez da situação, por vir praticando os círculos reflexivos em todo o largo do percurso vivo. Saiu daí, não me serve, caindo nos incorrigíveis esquemas das danças lacônicas. Afrontispígio, aprontife-se! A cena ininterrupta susta-se, o ventrólogo pelo ventrículo, a canícula pelo cubículo, o estímulo pelo patíbulo, satrelistem-se!





Paulo Leminski


no Catatau

10 de jan. de 2010

dois quadros

Para além da curva da estrada
talvez haja um poço, e talvez um castelo,
e talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva,
porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui só há a estrada antes da curva, e antes da curva
há a estrada sem curva nenhuma.





Falaram-me em homens, em humanidade,
mas eu nunca vi homens nem vi humanidade.
Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si,
cada um separado do outro por um espaço sem homens.



Alberto Caeiro

5 de jan. de 2010

falas

FÁBULA DO VENTO E DA FORMA

dizemos vento para dizer
o frágil, efêmero,
o que se mostra inalcançável
ou já não tem fundamento

também
acaso
impulso
destino

assim reunidas
essas palavras passam
a permutar suas atmosferas
respectivas

que nada têm
do vento quando
parece acompanhar
o curso d'água
e duplicá-lo

como se antes mesmo
de completar sua passagem
se dissipasse
num movimento
acima dos sentidos

outro, como se sabe,
é o desígnio da forma,
não só o de querer
persistir pela combinação
de suas cláusulas

mas desdobrá-las
em metamorfoses sempre dispostas
a absorver em si mesmas
o que lhes resiste
ou se mostra inalcançável

até tocar o limite
de sua própria negação
como o vento
sobre a harpa eólia
ou nos móbiles de Calder

Duda Machado
em Margem de uma onda

4 de jan. de 2010

um poema irresistível, pra recomeçar

PASSAGEM DO ANO

O último dia do ano 
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com [sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirá o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão esperas o amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve!

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

Carlos Drummond de Andrade
A rosa do povo