Páginas

21 de jul. de 2010

câmara de ecos

Viajando o oco do tempo

Deslizo,
oculto aqui,
viajando o oco do tempo.
Espaço ermo, parado. 
Nada acontece. Nada parece acontecer.
Mas algo flui, o irremediável,
queimando todas as pontes de regresso.
Todo o passado está morto;
só vige o que vem, o que surge.
Todas as coisas íntegras dilaceram-se
ou são dilaceradas.
A velha senhora viajada,
detentora de recorde de milhagens,
temerosa das vacas do Ganges
depois de ter contemplado um berne
ao microscópio.
Berne que agora corrompe e torna pútrida
qualquer carne verde que ela vê
pois seu olho holografa
o esqueleto subjacente a todo corpo vivo.
Viver em mudança.
O assoalho repleto das peles velhas das cobras
e do pêlo felpudo das aranhas caranguejeiras.
Viver em mudança.
Que a sobre-humana poesia pica e envenena um
homem.

Waly Salomão
em Algaravias

6 de jul. de 2010

teias


PIRANDELLO I

A paisagem parece um cenário de teatro.
É uma paisagem arrumada.
Os homens passam tranquilamente
com a consciência de que estão representando.
Todos passam indiferentes
como se fosse a vida ela mesma.
O cachorro que atravessa a rua
e que deveria ser faminto
tem um ar calmo de sesta.
A vida ela própria não parece ser representada:
as nuvens correm no céu
mas eu estou certo de que a paisagem é artificial
eu que conheço a ordem do diretor:
- Não olhem para a objetiva!
e sei que os homens são grandes artistas
o cachorro é um grande artista.

João Cabral de Melo Neto
em Primeiros poemas