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21 de ago. de 2010

reencontro com a Máquina, ou da Iluminação II

Expectativas

Intrigado com uma certa potência que se sente vir do outro lado da porta que há anos alguém encerrara para sempre, escondendo ou destruindo a chave, colocando na sua feitura materiais pesados ou intransponíveis, eis que o bom cantor desiste de cantar, o bom atleta de correr, o bom orador de falar, o bom lutador de lutar e até o bom filósofo pousa as mãos no tampo da mesa demonstrando que desistiu formalmente de pensar.
Do outro lado dessa porta que nenhum vivo viu jamais aberta está uma coisa - e viva - de forma, função e linguagem inacessíveis, que, no entanto, também, há muito tempo, há muitos e muitos anos, desistiu.

Gonçalo M. Tavares
Breves notas sobre o medo

reencontro com a Máquina, ou da Iluminação I

História de @, nascida e nascida

          Muitos dias no leito, entre dormindo e desperta, em silêncio. Sem ânimo sequer de abrir os olhos, porém com um novo e passageiro sentido à espreita em algum ponto do meu ser (ou este sentido é o meu ser total que se aguçou?), percebo os lentos e solenes movimentos do mundo, a montagem da máquina. Outro nome poderia ter este imenso aparato que aos poucos se organiza no espaço? Continuo atenta aos ruídos habituais do apartamento, aos que vêm de outros pontos do edifício e aos que vêm da rua. Mas  os passos sutis de minha mãe, o arranhar das portas gradeadas e não lubrificadas dos elevadores, as misturadoras de concreto e as serras mecânicas do prédio em construção, buzinas de automóveis, pregões, um amolador de tesouras, parecem-me disfarces, uma cortina de pequenos acontecimentos ilusórios, para ocultar o evento verdadeiro, o que me diz respeito e se relaciona com meu destino - a formação da máquina. As grandes peças vão surgindo (quem sabe de onde vêm?) e ajustam-se, organizam-se, chapas oxidadas de um navio com a quilha voltada para mim. Toda a máquina se arma em função do ponto em que estou. Semelha um navio? Talvez evoque, de maneira mais aproximada, uma esquadra numerosa, não ancorada no mar e sim no ar, dispostas em naves em formação cônica e de tal modo que eu seja o vértice do cone. O avançar do tempo é marcado pelas límpidas pancadas que se irradiam do Mosteiro de São Bento. Noite e dia, numa elaboração que parece interminável, forma-se a gigantesca máquina ou esquadra, forma-se, acrescenta-se e suas juntas rangem se o vento se levanta. Parece estar concluída, aprestada para a sua missão, que desconheço qual seja. Quando menos espero, uma unidade ou outra se desloca, as partes das quais se separam vão preenchendo o claro, enquanto as unidades deslocadas reaparecem além ou voltam à sua origem ignota.
           São três ou quatro horas da manhã quando afinal se completa. Não se ouvem rumores no edifício ou na cidade. Apenas, com intervalos mais ou menos longos, o ranger de um bonde sobre os trilhos, talvez rodando vazio. Mesmo as mulheres que lavam pela madrugada o piso encardido dos cafés situados entre a praça da Sé e o prédio dos Correios decerto já seguiram para as suas casas no subúrbio. Os onze elevadores no prédio estão parados: dois no térreo, um no oitavo andar, outro no décimo sétimo, ainda outro no último e os demais quem sabe onde. Alguns devem estar desarranjados, sempre há alguns precisando de consertos. O relógio de São Bento bate meia hora, três pancadas desiguais que se repetem. Meia hora de que hora? Eu espero. Deitada de costas, estendo os braços ao longo do corpo, os dedos crispados nos lençol, as pernas alongadas, unidas - e espero. A máquina, etérea mas real, seu arcabouço inatingível invadido em parte pela estrutura concreta do Martinelli, a máquina, varada por morcegos e tão alta que as últimas peças engolfam-se nas nuvens negras, nas nuvens dessa noite sem estrelas, a máquina se move e pousa delicadamente em mim. Gira e zumbe, assemelha-se a um pião em movimento, gira, giro vagaroso, zumbe e quase inaudível é o rumor que produz. Não tenho dificuldades em compreender que a sua lenta formação é puramente simbólica, que nada a impediria de formar-se mais rapidamente e que mesmo o fenômeno da formação da máquina seria indispensável, uma vez que, na verdade, sua existência é anterior à consciência que eu tenho de sua presença e de sua própria fabricação. A máquina, suavemente, gira sobre mim, a ponteira pousada no meu ventre. Seu giro capta os fatos do mundo, a ressonância dos fatos do mundo, mói em suas rodas as coisas e os eventos, verte-os em mim. Nas trevas, no silêncio, sem ninguém que me ajude a suportar esse momento em que, sob o vértice da máquina, suporto o seu peso, não, bem entendido, um peso físico, mas um peso que nasce da sua grandeza e da sua austeridade, processa-se em mim uma mudança de estágio, uma sagração. Sou, nessa hora, a partir dessa hora, a foz terrível das coisas, o ponto ou ser para onde converge, com suas múltiplas faces, o que o homem conhece, o que julga conhecer, o de que suspeita, o que imagina e o que nem sequer lhe ocorre que exista.

Osman Lins, Avalovara, p. 115-117.