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29 de set. de 2010

três

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O outro tigre

Penso num tigre. Esta penumbra exalta
A vasta biblioteca laboriosa
E parece afastar as prateleiras;
Forte, inocente, ensanguentado e novo,
Irá pela sua selva e pela manhã
E marcará seu rasto na lodosa
Margem de um rio cujo nome ignora
(Não há passado nem porvir, nem nomes
No seu mundo, só um instante certo)
E salvará as bárbaras distâncias,
Farejando no entrançado labirinto
Entre os odores o odor da alba
E o odor deleitoso do veado.
Por entre as riscas do bambu decifro
Suas riscas, pressinto a ossatura
Debaixo da pele esplêndida que vibra.
Interpôem-se em vão todos os mares
Convexos e os desertos do planeta;
Desta casa de um tão remoto porto
Da América do Sul, te sigo e sonho,
Ó tigre que és das margens do rio Ganges.

Na minha alma escorre a tarde e penso
Que o tigre vocativo do meu verso
É um tigre de símbolos e sombras,
Uma série de tropos literários
E de memórias de enciclopédia,
Não o tigre fatal, a aziaga jóia
Que, sob o sol ou a diversa lua,
Vai cumprindo em Sumatra ou em Bengala
A rotina do amor, de ócio, de morte.
Ao simbólico tigre eu quis opor
O verdadeiro, o de cálido sangue,
O que dizima a multidão dos búfalos
E hoje, 3 de Agosto de 59,
Alaga na planície uma pausada
Sombra, mas já o facto de o dizer
E de conjecturar-lhe a circunstância
Fá-lo ficção da arte e não criatura
Vivente dessas que andam pela terra.

Procuraremos um terceiro tigre.
Será, tal como os outros, uma forma
Do meu sonho, um sistema de palavras
Humanas, não o tigre vertebrado
Que, para além das vãs mitologias,
Pisa a terra. Bem sei, mas qualquer coisa
Me impõe esta aventura indefinida,
Insensata e antiga, e perservero
Em buscar pelo tempo desta tarde
O outro tigre, o que não está no verso.


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Jorge Luis Borges
Trad.: Fernando Pinto do Amaral

19 de set. de 2010

fora

-->Sentir o aconchego nessa falta de luz, nesse espaço fútil. Prefiro ignorar as aparências e nem mesmo cultivo a imaginação, prezo por esse silêncio. Sou bastante incapaz de qualquer coisa e sei bem que nenhuma preocupação vale o que quer que seja. E tirar o peso de todas as palavras é simplesmente não dizer nada ou é apenas adormecer. Não há abrigo nessa cidade, mas também já não há cidade...  Nós sempre estivemos aqui, embora ainda tenhamos na memória o dia em que começamos a caminhar.

eh

6 de set. de 2010

redemoinho

Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passadas,
Que como ando por vias desusadas,
Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.

O remédio será seguir o imundo
Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas andam juntas mais ornadas,
Do que anda só o engenho mais profundo.

Não é fácil viver entre os insanos,
Erra, quem presumir, que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.

O prudente varão há de ser mudo,
Que é melhor neste mundo o mar de enganos
Ser louco cos demais, que ser sisudo.

Gregório de Matos