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7 de fev. de 2011

desabrigada


O a-ban-do-no

            No princípio está a renúncia. Dela nasce tudo o que podemos amar em nosso ofício; sem ela nos veremos reduzidos ao velho, ao superado, às míseras do tempo, à cegueira do hábito, às promessas melancólicas da decadência. Trata-se da condição do início: terminar de uma vez, deixar tudo pra trás, de uma vez por todas. A renúncia é nossa utopia, a de todos os artistas, mesmo os mais persistentes. Balzac fez seu o lema da inscrição em pedra nos muros da Grande Cartuxa: Tace, late, fuge (cala, abandona, foge).
            Uma generalização bem óbvia é a de que todos os escritores, quando jovens, desejamos ser escritores. Não menos óbvio é termos sido todos jovens: fomos o tempo todo em que desejamos ser escritores, em tudo aquilo que nos levou a aprender que, para ser escritor, teríamos de encontrar um modo de renunciar a sê-lo. E não apenas isso, mas a ser “escritor bom” ou “escritor ruim”, a ser poeta, romancista, crítico, filósofo, e renunciar a mais, muito mais, se possível a tudo. Claro que descobrir o que era esse “mais” e esse “tudo” já não se mostrou tão simples. Investigar é entrar no território da invenção, do estilo, do destino. O que mais devemos abandonar? Que outra coisa devemos calar? De que novos giros de tempo ainda devemos fugir? Chega de perguntar e já estaremos no coração do romanesco, nas ilhas, montanhas, selvas, castelos, trens, barcos, rumo ao acaso. É quase como se voltássemos a ser jovens, e qualquer um sabe, por experiência própria, que todos os jovens quiseram ser escritores.
            Por sorte já não somos tão ingênuos, e se aprendemos algo, é que o abandono e a liberação não sobrevirão por um mero cessar. O antigo resiste a morrer: fulmina-o o raio do inesperado, burlando suas mais sutis precauções, uma legião. Tudo deve ser inventado, inclusive a renúncia a seguir inventando. Sobretudo a renúncia. A literatura inteira, o sistema das artes em sua fantástica variedade se revela nessa tarefa, se põe de pé (até agora víamos isso ao contrário, num reflexo desluzido).
            Abandonar é permitir que o mesmo se torne outro, que o novo comece. E assim nunca abandonaremos o bastante, tão grande é nossa sede de desconhecido. (Por isso nos fizemos escritores.) Buscamos algo mais para abandonar, outra coisa, outra além, nos esforçamos como nunca nos esforçamos em nenhum dos trabalhos que empreendemos, mobilizamos toda nossa invenção, até mesmo a alheia, em busca de novas renúncias. E já não se trata de abandonar técnicas, gêneros, uma profissão, nossas velhas mesquinharias... O que aparece, afinal, como objeto digno de nosso abandono é a vida em que vínhamos acreditando até agora. “Já vi, já tive, já vivi”. Aí descobrimos que a literatura ainda nos serve, a literatura posta do direito, instrumento perfeito para negar a si própria, levando consigo tudo, em seu reflexo aniquilador.
            É a euforia, enfim, o entusiasmo, a vocação, o êxtase prometido... mas é uma euforia da melancolia. Porque nossa vida passou... Teve de passar para que aprendêssemos. Parece como se fosse muito tarde, como se não houvesse outro momento além desse, póstumo, pra começar. Então, “do fundo do naufrágio”, voltamos em busca de consolo nos poetas que amamos em nossa juventude, quando queríamos ser escritores. Primeiro Baudelaire. Depois todos os outros. E depois Rimbaud. Nele nos detemos, perplexos, no presente. Chegamos. Podemos começar. Podemos terminar. De Rimbaud, o poeta mais amado, sempre se diz ser mais que um poeta amado. Deve ser isso, porque não começamos sequer com ele. Não começamos, aliás, sequer com nós mesmos. Nos escapa como um mau projeto. Foge para frente, e não vale a pena persegui-lo. É o mito de nossas vidas, nossa juventude em pessoa. Certa vez perguntei a um poeta, o que mais amei, por que não havia terminado o secundário. Por que não havia seguido o caminho. Me respondeu, com toda naturalidade, como se fosse óbvio: “Pra que, se o que eu queria era ser Rimbaud”. É óbvio, realmente, todos poderíamos responder o mesmo. Mas ultimamente começo a me perguntar se essa frase não estará além das precisões biográficas, repetindo para sempre o mito que pretendemos encarar. Para que viver, com efeito, por que queremos ser escritores, se o que desejamos é ser Rimbaud? Deveríamos deixar de nos mentir. Talvez saiamos ganhando ao perder tudo. O tempo, em sua transparência inofensiva, contém a promessa do instante, e a alquimia se realiza no caderno de um menino. E digo “se realiza” em sentido literal. Se faz realidade, tal como se faz real a realidade: no presente, em nós, definitivamente. Nossos mais loucos e irrealizáveis desejos estão se fazendo realidade em nossas vidas, ou seja, em Rimbaud. Não é história, nem filologia, nem crítica literária; é um procedimento para fazer do mundo, mundo. Por isso, este curso, que originalmente se chamaria “Como ser escritor”, irá se chamar, ao fim das contas, “Como ser Rimbaud”.


César Aira, em Pequeno manual de procedimentos