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7 de abr. de 2011

Na tonga da mironga do kabuletê

(para os luíses da minha vida)

Assim como Deus – coincidência de contrários, segundo Nicolau de Cusa (isto é: encruzilhada, interseção de linhas, bifurcação de trajetórias, plataforma ou terreno baldio onde se encontram todos os transeuntes) – pôde ser patafisicamente definido como “ponto tangente do zero e do infinito”, encontra-se entre os inúmeros fatos que constituem nosso universo certa espécie de nós ou pontos críticos que poderíamos geometricamente representar como lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo.
Com efeito, certos lugares, certos acontecimentos, certos objetos, certas circunstâncias muito raros suscitam, quando sobrevém que se apresentem ou que nos envolvamos com eles, a sensação de que sua função na ordem geral das coisas consiste em nos pôr em contato com o que há em cada qual de mais profundamente íntimo, de mais quotidianamente turvo e mesmo de mais impenetravelmente oculto. Dir-se-ia que tais lugares, acontecimentos, objetos, circunstâncias têm o poder, por um brevíssimo instante, de trazer à superfície insipidamente uniforme em que habitualmente deslizamos mundo afora alguns dos elementos que pertencem com mais direito à nossa vida abissal, antes de deixar que retornem – acompanhando o ramo descendente da curva – à obscuridade lodacenta donde haviam emergido.
Tão somente a atividade passional (ou, de modo mais restrito: genital) conhece tais tensões seguidas de distensões, tal sequência de aproximações e afastamentos, tais montanhas-russas de subidas e descidas. A alternância dos processos de sacralização e dessacralização, inerente a todas as operações propriamente religiosas, o ritmo – o modo de conjugar valores fortes e fracos – em matéria estética, o prazer que proporcionam os esportes e os jogos (em especial os jogos de azar) participam, em graus e títulos diversos, dessa dinâmica empolgante, que faz com que todo momento em que nos sentimos enfim num ápice e em harmonia conosco e com a natureza ao redor revista-se do aspecto de uma espécie de tangência, isto é, de um breve paroxismo, que não dura mais que um relâmpago e que deve seu fulgor ao fato de estar na encruzilhada de uma união e de uma separação, de uma acumulação e de uma dissipação [...].
Reagentes de uma espécie de química moral, cujas reações coloridas trariam à luz alguns dos turbilhões confusos que se agitam em nossos recessos, esses fatos reveladores tornam-se cada vez menos freqüentes numa época como a nossa, esmagada pela necessidade imediata e engrenada de tal modo que o homem parece a cada instante mais resignado a esse divórcio de si mesmo que se dá pela hipertrofia do pensamento lógico ou, pior ainda, pela rendição a um empirismo estreito, camuflado mais ou menos habilmente sob a etiqueta de “realismo”.
Noutros séculos e noutras culturas, observam-se ritos, jogos, festas que servem de natural exutório aos impulsos da afetividade e graças aos quais os homens podem imaginar, ao menos por algum tempo, que assinaram um pacto com o mundo e reencontraram a si mesmos. Opera-se desse modo uma purgação, aplacando-se tais picos de febre sem que estes tenham que recorrer, para se exteriorizar, seja a uma via explosiva, seja a um disfarce utilitário ou racional, e por isso mesmo funesto para qualquer possibilidade de justa ação prática ou reflexiva. Mas em nossos dias e em nossas civilizações não é mais possível encontrar escape confessável para tais impulsos subterrâneos senão de modo esporádico e fragmentário, ao sabor do acaso ou sob a forma edulcorada de criações artísticas que cessaram de deitar raízes profundas no entusiasmo coletivo. Daí o tédio, a impressão de vida castrada, a tal ponto que, aos olhos de alguns, as conjunturas mais catastróficas podem parecer desejáveis, uma vez que ao menos teriam o poder de colocar em jogo a totalidade de nossa existência.

Michel Leiris, em O espelho da tauromaquia