Díptico do silêncio
1.
Gosto do seu silêncio, da sua maneira de não dizer. Aí está você, sentada ao lado da parede, pálida. Protejo com cuidado a vela, que é sumária, da intempérie insuspeitada de ser amada. Prefiro não dizer que a amo, basta-nos o gozo lento deste olhar. Nem preciso escrever seu nome. O que não foi dito pode ser esquecido? Para que houvesse verbo, no início, fazia silêncio dentro da carne. Nesse instante, veio a palavra e lhe deu limites, inaugurou o verso e fez história pela interrupção. Não sei porque preciso lhe dizer isso.
2.
Fui proibido de ficar em silêncio. Conheço bem aquilo que dói. Leio sobre cada parte do meu corpo a história de uma humilhação. Quando se mastiga a mordaça apenas o corpo medita, melancólico, voluntarista, fora de foco, aquém ou além do que se trata. O corpo não se cala, é testemunha voluntária. O corpo pede para ter voz. O que não foi dito pode ser esquecido? Só o que não se diz é preciso dizer. O verbo se faz carne pelo silêncio. Minhas mãos fazem gestos de lavrador, cuja feroz agricultura me promete o esquecimento.
Marcos Siscar, em O roubo do silêncio