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3 de nov. de 2011

sobre a matéria da nossa voz


A dor do diálogo

                Esse livro [Blanchot se refere a Le square, de Marguerite Duras, mas vamos imaginar qualquer outro] não é certamente ingênuo, e embora nos atinja desde suas primeiras páginas, por um contato ao qual não fugimos – é estranha essa espécie de lealdade que a leitura faz renascer em nós -, não tem, não pode ter a simplicidade cuja aparência nos oferece, pois a dura simplicidade das coisas simples, com as quais ele nos põe em relação, é dura demais para poder simplesmente aparecer.
                Duas vozes quase abstratas, num lugar quase abstrato. É isso que nos atinge primeiramente, essa espécie de abstração; como se esses dois seres que conversam numa pracinha – ela tem vinte anos e é empregada doméstica; ele, mais velho, vai de feira em feira vendendo coisas de pouco valor – não tivessem outra realidade senão suas vozes, e esgotassem nessa conversa fortuita o que resta de chance e verdade, ou mais simplesmente de palavras, a um homem vivo. Eles precisam falar, e essas palavras precavidas, quase cerimoniosas, são terríveis devido à contenção, que não é apenas a polidez das existências simples, mas é feita da extrema vulnerabilidade desses dois seres. O temor de ferir e o medo de ser ferido estão nas próprias falas. Elas se tocam, se retiram ao menor contato um pouco mais intenso; estão ainda vivas, certamente. Lentas, mas ininterruptas, e não se detendo por receio de não ter tempo: é preciso falar agora, ou nunca; entretanto sem pressa, pacientes e na defensiva, calmas também, como é calma a fala que, se não se contivesse, quebrar-se-ia num grito; e privadas, num grau doloroso, da facilidade da tagarelice que é a leveza e a liberdade de certa felicidade. Ali, no mundo simples da carência e da necessidade, as palavras se concentram no essencial, atraídas apenas pelo essencial, e monótonas, por conseguinte, mas também demasiadamente atentas àquilo que se deve dizer para evitar as fórmulas brutais, que poriam fim a tudo.
                É que se trata de um diálogo. A surpresa que esse diálogo provoca em nós nos faz perceber o quanto é raro; ele nos coloca diante de um acontecimento inabitual, quase mais doloroso do que maravilhoso.


Maurice Blanchot, em O livro por vir