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28 de nov. de 2012

Lakshmi


GATA

      De neve, de uma maciez de arminho e lactescência de neve, de uma nervosidade frenética, era luxuosa, principesca, de certo, essa orgulhosa gata.
      As Esmeraldas dos seus olhos claros fosforeavam sensualmente, eletricamente, quando alguém, no conforto da casa, lhe acarinhava de manso o dorso, o focinho tenro, polposo, espiguilhado de prateados fios sutis; e, no seu lindo pêlo cetinoso e alvo, como numa fresca e virginal epiderme de mulher aristocrata, perpassava um frisson de ternura, um estremecimento, como se em toda ela vibrasse alguma fibra de espiritual e amoroso. 
      E era então fidalga nas sensações, no ronronar apaixonado, ao luar, sob o cintilante cristal das estrelas, pelas caladas vastidões da noite, ou, nas horas de sesta, nos quentes, enlanguescedores mormaços, preguiçosa e fatigada, anelando o repouso, numa onda de gozo e volúpia , enroscada, serpenteada, torcicolosa e convulsa, como um organismo suave e débil que um vivo azougue eletriza e agita.
       Talvez fosse a alma de alguma vaporosa rainha que ali vivesse nesse precioso animal, alguma misteriosa visão polar dentro daquele feltro branco, daquela pelúcia rica, daqueles flocos eslavos; algum sonho, enfim, errante, vago, perdido nesse nobre exemplar felino de formas lascivas, flexuosas e delicadas. 
      Às vezes, mesmo, ela errava, como a nômade que perde a rota da caravana pelos desertos escaldados de sol, em busca de alimento; e os seus olhos, penetrantes no verde úmido e agudo das luminosas pupilas, mais até fantasiosa a tornavam e mais nevoeiro davam à sua lenda de fadas.
      E assim, arminho girante, que as quatro veludosas patas faziam fidalgamente caminhar, miando histérica, era como uma sonâmbula idealizada e amante que soluçava e gemia implorativamente a sua dor, através de aposentos, na indiferença de quase todos.
       Um dia, porém, uma doce mão feminina e perfumada quis tê-la junto de si e levou-a consigo para a tepidez e a pompa das alcovas cheirosas, vivendo com ela ao colo, passando-lhe os íntimos alvoroços do seu sangue de Virgem – como se a gata fosse um profundo seio de afagos  a que ela confiasse todos os seus mistérios e segredos de Noiva ainda presa no claustro cerrado, como as monjas normandas, da carne inquietante e alucinadora.
       Agora, com a formosa seda do pêlo vibrando à carícia, alta e feliz a cabeça artística, vive nesse colo impoluto, em sonhos deliciosos e gozos infinitos de orientalista, o belo exemplar felino, branco, voluptuoso e dolente como a lua embalada e cismando, imaculadamente, no seio azul das Esferas.


Cruz e Sousa, Missal

25 de nov. de 2012

zoophilia

Por onde andará Stephen Fry?


Por onde andará Stephen Fry?
Por onde andará Stephen?
Ninguém sabe do seu paradeiro
ninguém sabe pra onde ele foi
pra onde ele vai
Stephen may be felling
all alone
Stephen never do this again
come back home
Se correr o bicho pega Stephen
se ficar o bicho come

Zeca Baleiro




Stephen Fry não era uma cadela como as outras. Isso era perceptível a qualquer um que se deparasse com ela. Como se não bastasse sua aparência um tanto estranha, uma combinação de raposa com pincher ou sabe-se lá o quê (muitos foram os que tentaram adivinhar os componentes da mistura), fazia uso de dotes dramáticos muito refinados. Ah, e usava meias, quatro meias soquete. Stephen Fry também possuía muitos nomes e a todos atendia com a mesma indiferença se não viessem acompanhados de um suculento pedaço de carne ou de uma porção de arroz, puro mesmo. É que no final da vida lhe restavam poucos dentes, triturar a ração já era um grande esforço. Mas, mesmo antes disso, talvez já prevendo as limitações futuras, Stephen se aprimorou na arte dramática. Ao perceber movimentação ao redor da churrasqueira – qualquer uma da vizinhança – para lá se dirigia, sem demoras, com seu passo curto, abanando a cauda de esquilo. Ou de raposa. Ou de um mini-pastor alemão capa-preta. Tanto faz. Chegando perto da churrasqueira e das pessoas, já começava a demonstrar toda sua astúcia: tossia, espirrava, cheia de tremeliques, gania e fungava como se tivessem mesmo chegado os seus últimos minutos. Claro que era recompensada, seu engenho era certeiro e capaz de atingir até os corações mais duros, que não lhe negavam uma lasquinha de carne ou migalha de pão. Alegria maior aos domingos! Passava de casa em casa, fazendo o seu show. Ninguém da vizinhança sabia sua idade, todos afirmam que ao chegar ela já estava ali. Ela não tinha paciência pra alegria imbecil dos cachorros mais jovens, achava muito metidos os gatos com suas superioridade e malemolência. Gostava mesmo de ser acariciada com uma vassoura dura, o instrumento mais adequado para o seu pelo espesso. Stephen Fry sabia bem se passar por vítima quando, na verdade, era uma rainha! Seus latidos imperativos faziam o dono lhe abrir o portão ou lhe servir um pote de água fresca mesmo no meio de uma madrugada fria. Era educada, isso sim! Não sujava seu próprio terreno de jeito algum, mesmo que precisasse aguardar alguns minutos para escapar durante a passagem de alguém pelo portão e ir ao mato vizinho. Daí aproveitava o momento para passear pelas suas antigas casas ou cochilar na grama, sob o sol. Em um de seus passeios Stephen Fry foi encontrada pelo terrível casal do carro grande azul. O casal do carro grande azul se acha muito importante, demonstra sua importância com seu carro grande azul. O casal viu Stephen um dia, fizeram uma série de suposições sobre os bichos com os quais Stephen se assemelhava – um esquilo, uma raposa, um pincher -, nenhuma era inédita. O casal do carro grande azul sentiu pena de Stephen ao ver sua perna trêmula, sua língua de fora, seu olho cego, seu passo lento e achou que sabia bem aquilo de que Stephen precisava. Foi então que levaram Stephen no seu carro grande azul, para sua grande casa rosa, com mais três poodles e um chiwawa. Ao final do mesmo dia em que Stephen chegou na grande casa rosa do casal do carro grande azul, foi levada para outro lugar estranho, com cheiro estranho. Ela, que não sabia o que eram vacinas ou vermífugos, e nunca havia ido a um pet-shop, gostou do banho e também do ar quente do secador. Mas achou uma bela porcaria os lacinhos e o perfume. Ela agora tem uma almofada limpa e cheirosa, mas daria tudo pra voltar ao velho bairro, aos churrascos de domingo, aos cachorros e gatos companheiros de tantas jornadas, ainda que fosse para dormir em cima de um saco de carvão e acordar com suas meias soquete brancas bem pretinhas... Ela, que vira o bairro crescer tão rapidamente e ainda preferia as ruas antes do calçamento, antes de tantas casas. Mas o casal do carro grande azul não entende o comando de seus latidos e lá na casa grande rosa toda sua técnica de encenação não tem surtido o menor efeito! O jeito agora é se resignar à vida na casa grande rosa e suportar o latido estridente dos poodles e do chiwawa. Quando eles se aproximam para dividir o calor e compartilhar a almofada, Stephen não tem pena e dá o bote. Certeiro. Ah! Se ainda lhe restasse algum dente...


eh

2 de nov. de 2012

andar no mundo

Hábitos e atenção
     A primeira de todas as qualidades é a atenção - afirma Goethe. No entanto, ela divide a primazia com o hábito que luta com ela desde o primeiro momento. Toda atenção deve desembocar no hábito se não pretende desmantelar o homem; todo hábito deve ser estorvado pela atenção se não pretende paralisar o homem. Atenção e hábito, assim como repulsa e aceitação, constituem cristas e depressões de ondas no mar da alma. Mas este mar tem suas calmarias. Sem dúvida, uma pessoa que se concentre totalmente num pensamento aflitivo, numa dor e seus abalos, pode se tornar presa do ruído mais tênue, de um murmúrio, do voo de um inseto, os quais um ouvido mais atento e mais aguçado não teria talvez percebido de modo algum. A alma - assim se pensa - se deixa desviar tanto mais facilmente quanto mais concentrada está. Porém, não será esse escutar atento menos o fim do que o desenvolvimento extremo da atenção - o instante em que ela deixa emergir de seu próprio âmago o hábito? Este zunido ou sussurro é o umbral, e despercebidamente a alma o ultrapassou. É como se não mais quisesse retornar ao mundo habitado; vive agora num mundo novo onde a dor é o seu oficial de acantonamento. Atenção e dor são complementos. Mas também o hábito tem um complemento, e atravessamos o seu limiar no sono. Pois o que se realiza em nós durante o sonho é um perceber novo e inaudito que, no regaço do hábito, luta para se safar. Acontecimentos do dia a dia, conversas triviais, o resíduo que ficou em nosso olhar, o pulsar do próprio sangue - isso, antes despercebido, forma, de modo irreconhecível e supernítido, a matéria dos sonhos. Nos sonhos - nenhum assombro; na dor - nenhum esquecimento, pois ambos já trazem em si o seu oposto, como as cristas e as depressões das ondas que, na calmaria, estão acomodadas umas sobre as outras.


Montanha abaixo
      A palavra abalo tem sido ouvida abusivamente. Com relação a isso, alguma coisa bem poderia ser dita em sua honra. Em momento algum ela vai se afastar do mundo físico e, acima de tudo, vai se ater a um ponto, ou seja: o abalo conduz ao desmoronamento. Querem, pois, dizer - aqueles que nos asseguram de seu abalo a cada premiére ou a cada novidade - que algo neles desmoronou? Ah, a frase que estava estabelecida antes, continua estabelecida depois. Como poderiam também conceder a si próprios a pausa à qual só o desmoronamento pode suceder? Ninguém nunca a sentiu com maior nitidez que Marcel Proust na morte da avó que lhe pareceu consternadora, mas de modo algum real - até que, à noite, ao tirar os sapatos, lhe vêm lágrimas. Por quê? Porque ele se curvou. Assim, o corpo é o que desperta justamente a dor profunda e pode igualmente despertar o pensamento profundo. Ambos precisam de solidão. Quem alguma vez escalou sozinho uma montanha e chegou esgotado ao topo para em seguida descer com passos que abalam todo o seu esqueleto sabe que, para ele, o tempo se desagrega, as paredes divisórias em seu interior desabam e, através dos cascalhos dos instantes, ele caminha trotando como num sonho. Por vezes tenta parar, mas não consegue. Quem sabe se são pensamentos que o abalam ou o áspero caminho? Seu corpo se tornou um caleidoscópio que, a cada passo, lhe apresenta figuras cambiantes da verdade.

Walter Benjamin,  trechos da "Sequência de Ibiza",  Rua de mão única

28 de out. de 2012

Dos lugares comuns, ou A construção do templo

Extracción de la piedra de locura

[...]

        Puertas del corazón, perro apaleado, veo un templo, tiemblo, ?qué pasa? No pasa. Yo presentía una escritura total. El animal palpitaba en mis brazos con rumores de órganos vivos, calor, corazón, respiración, todo musical y silencioso al mismo tiempo. ?Qué significa traducirse en palabras? Y los proyectos de perfección a largo plazo; medir cada día la probable elevación de mi espíritu, la desaparición de mis faltas gramaticales. Mi sueño es un sueño sin alternativas y quiero morir al pie de la letra del lugar común que asegura que morir es soñar. La luz, el vino prohibido, los vértigos, ?para quién escribes? Ruinas de un templo olvidado. Si celebrar fuera posible.

[...]

Alejandra Pizarnik

4 de set. de 2012

a natureza e os verbos no infinitivo


Autos: novos e usados

      Olhe bem o que eu lhe digo, pronto,  escute, eu sei, mas como estou  a falar do que se vê prefiro dizer-lhe para olhar. Falámos já de tantas coisas que a minha recapitulação será inevitavelmente incompleta. Mas acho isso desculpável. Falámos das tradições e dos saberes distantes que se encontram, da vontade de não deixar nada de fora, embora aqui de pouco mais se tratasse do que de salvar qualquer coisa mesmo sendo apenas a nossa boa consciência. E também, aqui e ali, falámos de perturbação, mesmo da urgência de a provocar  e também da arte que tem - ou pelo menos deve - engendrar problemas, inquietação e até provocação.
      Parecíamos os da publicidade quando falámos de provocação, parecia um excesso, mas tenho para mim que se tratava apenas de não saber dizer mais nada.
      Foi de tudo, nada nos escapou. Enumerámos as razões tão demorada e exaustivamente quanto as legitimidades e, atenção, como pessoas cuidadosas que somos, não deixámos de fora nem as expectativas.
     O resultado não foi brilhante. Acumulámos um saber - não chegou para sabedoria - um pouco esbranquiçado. Sabe, como há aqueles que lavam o dinheiro, pouco mais fizemos do que lavar, e sem intenção deliberada o que ainda é mais grave, alguns propósitos sobre os artistas, ou a arte, como quiser.
      Esquecemos, porém,  duas coisa que creio importantes: o encantamento e a estranha capacidade de nos movimentarmos no tempo
     Há muitos, muitos anos vi um livro, sobre não sei quê,  que tinha uma série de ilustrações que me encantaram. Encantar é algo que está aquém daquilo que se pode traduzir numa explicação, primeiro porque o nosso, deixe-me usar um termo repugnante, aparelho conceptual não pode e depois, mais tarde, porque não o quer. E não o quer mesmo e nada adianta. Também não é preciso este estar aquém, serve igualmente estar além ou apenas e simplesmente não estar.
     O tempo desloca então estas memórias e junta-as a coisas que então não eram de todo entendidas: tratava-se nesse então sempre de imagens e não do seu estatuto, da sua idade ou da sua técnica de reproductibilidade.... O pato Donald mexia-se porque seria contra a natureza não se mexer ou, pior  ainda, adivinhar as condições do seu movimento.
     Todas estas imagens são assim, estabelecem uma espécie de círculo entre o que vi e vejo. Distam muitas dezenas de anos entre a descoberta e o reencontro, que por razões éticas e também de asseio vou elidir. Há também tudo o que mudou e transforma: mais uma vez o tempo, a técnica e o inevitável eu.
     Apresentando naturais desculpas.

Jorge Molder, aqui

24 de ago. de 2012

vacuidade

bate o vento eu movo
volta a bater de novo
a me mover eu volto
sempre em volta deste
meu amor ao vento

Paulo Leminski, nos Caprichos & relaxos

23 de ago. de 2012

Sobre o sujeito e o ser-possuído

(para Drummond e Cabral, que aprenderam com a pedra)


Os sentimentos "experimentados atualmente pelos homens mais sensíveis" se reduzem a um "pequeno catálogo" limitado pela pobreza do léxico à sua disposição: eles se contentam em ser "orgulhosos" ou "humildes", "sinceros" ou "hipócritas", "alegres" ou "tristes", "com todas as combinações possíveis dessas qualidades deploráveis". Resta-lhes, contudo, "conhecer milhões de sentimentos" diferentes, o que não poderão fazer a partir do contato com seus semelhantes, prisioneiros das mesmas expressões e representações estanques, mas a partir do contato com as coisas, cuja infinita diversidade nunca foi verdadeiramente levada em conta pela linguagem. Pois os homens não fazem senão projetar nelas seus miseráveis estados de alma; da pedra, por exemplo, eles não encontram nada melhor a fazer e a dizer do que lhe dar um coração, com o qual ela passará bem, pois se trata de "um coração de pedra". 

Michel Collot, pensando sobre (com) Francis Ponge, no texto "O sujeito lírico fora de si"

7 de ago. de 2012

o que tem duração


Enquanto eu lia o livro

Enquanto eu lia o livro,
a famosa biografia:
- Então é isso (eu me perguntava)
o que o autor chama
a vida de um homem?
E é assim que alguém,
quando morto e ausente eu estiver,
irá escrever sobre a minha vida?
(Como se alguém realmente soubesse
de minha vida um nada,
quando até eu, eu mesmo, tantas vezes
sinto que pouco sei ou nada sei
da verdadeira vida que é a minha:
somente uns poucos traços
apagados, uns dados espalhados
e uns desvios, que eu busco
para uso próprio, marcando o caminho
daqui afora.)

Walt Whitman (em tradução de Geir Campos)

30 de jan. de 2012

Da arte de habitar lugares ou As casas espiam os homens

Oh as casas as casas as casas

Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala para sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao serem demolidas
elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
respirei - ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas


Ruy Belo, em Homem de palavra[s]