Escolher sua herança
É verdade, sempre me reconheci, quer se tratasse da vida ou
do trabalho do pensamento, na figura do herdeiro – e cada vez meias, de maneira
cada vez mais assumida, às vezes feliz. Ao me explicar de maneira insistente
com esse conceito ou com essa figura do legatário, cheguei a pensar que, longe
do conforto seguro que se associa um pouco rápido demais a essa palavra, o herdeiro devia sempre responder a
uma espécie de dupla injunção, a uma designação [assignation] contraditória: é preciso primeiro saber e saber
reafirmar o que vem “antes de nós”, e que portanto recebemos antes mesmo de
escolhê-lo, e nos comportar sob esse aspecto como sujeito livre. Ora, é preciso
(e este é preciso está inscrito totalmente na herança recebida), é preciso
fazer de tudo para se apropriar de um passado que sabemos no fundo permanecer
inapropriável, quer se trate aliás de memória filosófica, da precedência de uma
língua, de uma cultura ou da filiação em
geral. Reafirmar, o que significa isso? Não apenas aceitar essa herança, mas
relançá-la de outra maneira e mantê-la viva. Não escolhê-la (pois o que
caracteriza a herança é primeiramente que não é escolhida, sendo ela que nos
elege violentamente), mas escolher preservá-la viva. A vida, no fundo, o
ser-em-vida, isto talvez se defina por essa tensão interna da herança, por essa
reinterpretação do dado do dom, até mesmo da filiação. Essa reafirmação, que ao
mesmo tempo continua e interrompe, no mínimo se assemelha a uma eleição, a uma
seleção, a uma decisão. A sua como a
do outro: assinatura contra assinatura. Mas não me servirei de nenhuma dessas
palavras sem cercá-las de aspas e de precauções. A começar pela palavra “vida”.
Seria preciso pensar a vida a partir da herança, e não o contrário. Seria
preciso portanto partir dessa contradição formal e aparente entre a passividade
da recepção e a decisão de dizer “sim”, depois selecionar, filtrar,
interpretar, portanto transformar, não deixar intacto, incólume, não deixar salvo aquilo mesmo que se diz respeitar
antes de tudo. E depois de tudo. Não deixar a salvo: salvar, talvez, ainda, por
algum tempo, mas sem ilusão quanto a uma salvação final. [...]
Meu
desejo se parece com aquele de um apaixonado pela tradição que gostaria de se
livrar do conservadorismo. Imagine um apaixonado pelo passado, apaixonado por
um passado absoluto, um passado que não seria mais um presente passado, um
presente na medida, na desmedida de uma memória sem fundo – mas um apaixonado
que receia o passadismo, a nostalgia, o culto da lembrança. Dupla injunção
contraditória e desconfortável, portanto, para esse herdeiro que acima de tudo
não é o que se chama “herdeiro”. Mas nada é possível, nada tem interesse, nada
me parece desejável sem ela. Ela ordena dois gestos ao mesmo tempo: deixar a
vida viva, fazer reviver, saudar a vida, “deixar viver”, no sentido mais
poético daquilo que, infelizmente, foi transformado em slogan. Saber “deixar”,
e o que significa “deixar” é uma das coisas mais belas, mais arriscadas, mais
necessárias que conheço. Muito próxima do dom e do perdão. A experiência de uma
“desconstrução” nunca acontece sem isso, sem amor, se preferir essa palavra.
Jacques Derrida, em entrevista a Elisabeth Roudinesco no livro De que amanhã... diálogo