Fábulas
não são parábolas, nenhum sentido oculto, toda fábula é feita de luz. Moral da
história, histórias são amorais. Na geração de fábulas, os homens cifraram o
desejo infinito de uma vida sem fim. O amor é amoral. Eu me amo, não posso
viver sem mim. Em pedra? Em estrela? Em flor? Façam suas escolhas. Em que vou
me transformar, no final? Quem acertar, ganha o direito de olhar bem nos olhos
da Medusa. Não é uma beleza? Quem não gostaria de ser estátua de si mesmo?
Metamorfose, quando é demais, cansa. Quem me dera uma máscara para repousar meu
rosto de todo esse vão mudar. Não se pense que vou ficar assim a vida toda. Um
dia eu mudo, vão ver. No carnaval de transformações, passa a sombra da Medusa,
dor sem fim de virar pedra. Sempre virar, sempre mudar, nunca se sustentar em
seu próprio ser. Esta fonte é uma sopa de mentiras, um abismo de ilusões. O
lugar de origem dos seres sem substância, feitos apenas de vagas impressões,
enredos inverossímeis e esperanças inúteis. Tudo são deuses, o medo, o acaso, a
esperança, tudo filhos do destino. Esta fonte funda dá para o inferno, vai dar
no reino de Hades. Mergulhasse aqui, a terra das sombras, dos sonhos loucos, a
trava do medo. No fundo, lá no último íntimo fundo desta fonte, Hades, o fim. [...]
Como
é que se chama a moeda que se põe na boca do morto para ele pagar a passagem na
barca de Caronte? Naulo? Saulo? Paulo? Pague, e passe por Cérbero. Beba a água
do Estige, o rio do esquecimento, lotofagos, amnésia, sete anos de Ulisses nos
braços de Circe. Memória, também um deus? Nem me lembro mais. Lembro de um rio
de água limpa, água rápida, muitas águas rápidas, nunca se bebe de novo no
mesmo rio. Rios passam, não passa esse meu rosto. Esta carne se vai, o reflexo
demora mais um pouco, esquecer é um dom dos deuses. Esta fonte fosse vinho, pai
Dionísio, lembrar é insuportável. A dor é um deus, dor ninguém esquece.
Paulo Leminski, em Metaformose