Páginas

8 de dez. de 2014

A primeira pele, e a segunda...

DO DESEJO

Quem és? Perguntei ao desejo.
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.


I
Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradora.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.


II
Ver-te. Tocar-te. Que fulgor de máscaras.
Que desenhos e ríctus na tua cara
Como os frisos veementes dos tapetes antigos.
Que sombrio te tornas se repito
O sinuoso caminho que persigo: um desejo
Sem dono, um adorar-te vívido mas livre.
E que escura me faço se abocanhas de mim
Palavras e resíduos. Me vêm fomes
Agonias de grandes espessuras, embaçadas luas
Facas, tempestade. Ver-te. Tocar-te.
Cordura.
Crueldade.


V
Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo
Este da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Sabes por quê? Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.


VII
Lembra-te que há um querer doloroso
E de fastio a que chamam de amor.
E outro de tulipas e de espelhos
Licencioso, indigno, a que chamam desejo.
Não caminhar um descaminho, um arrastar-se
E um único extraordinário turbilhão.
Por que me queres sempre nos espelhos
Naquele descaminhas, no pó dos impossíveis
Se só me quero viva nas tuas veias?


VIII
Se te ausentas há paredes em mim.
Friez de ruas duras
E um desvanecimento trêmulo de avencas.
Então me amas? te  pões a perguntar.
E eu repito que há paredes, friez
Há molimentos, e nem por isso há chama.
DESEJO é um Todo lustroso de carícias
Uma boca sem forma, um Caracol de Fogo.
DESEJO é uma palavra com a vivez do sangue
E outra com a ferocidade de Um só Amante.
DESEJO é Outro. Voragem que me habita.


X
Pulsas como se fossem de carne as borboletas.
E o que vem a ser isso? perguntas.
Digo que assim há de começar o meu poema.
Então te queixas que nunca estou contigo
Que de improviso lanço versos ao ar
Ou falo de pinheiros escoceses, aqueles
Que apetecia Talleyrand cuidar.
Ou ainda quando grito ou desfaleço
Adivinhas sorrisos, códigos, coluios
Dizes que os devo ter nos meus avessos.

Pois pode ser.
Para pensar o Outro, eu deliro ou versejo.
Pensá-LO é gozo. Então não sabes? INCORPÓREO
                                                            É O DESEJO.



Hilda Hilst, Do desejo

8 de nov. de 2014

para além do cotidiano estéril de horrível fixidez

HURACAN

CAMBIAR DE IDIOMA POUR
PROVOQUER SYSTÉMATIQUEMENT
LE DELIRE
MANTRA DO DIA:

E é para além do mar a ansiada Ilha.
O poeta carrega um estandarte escrito:
SOU SEMPRE DOIDO.
CAMBIAR DE COR. água de la mar.
Yo cargo en mi corazón las imagenes del EDEN mi
alma incendida como un carbón cada toda manhã
sento na beira da lagoa e deixo o verde dos montes e
o reflexo do espelho se estampar em minha cara.
esta lagoa que trago dentro do peito. Hoguera.
minha alma = meu rosto.
Simples e calmo mas não alegre nem triste:
inexistente. não ME sinto: “sou” feixe de sentidos.
Todas as coisas depois de feitas compõem
um movimento insuficiente – tomar ar –
1 passo atrás 2 na frente 2 passos
atrás 1 na frente 1 passo atrás 2 na frente 2 passos
atrás 2 na frente – tomar ar – provocar
um movimento superior da minha alma.
Tomo os céus e despenco e torno a tomar
Evitar que minha cara minhas cartas meu
papo minha figura se transformem em
crítica maniqueísta de pessoas- situações:
“O reino da sorridência e o tema do traidor”.
Coragem é CAMBIAR de coração para
a alma não ter sede onde pausar:
ERRAR. errar e perseverar no erro. errar
e não perseverar no erro. NÃO ERRAR.
Descer aos infernos e tornar afiada a
fileira que desde o Rio das Contas venho
enfiando
TORNAR AOS CÉUS
TOMAR OS CÉUS DE ASSALTO
O céu retirado como livro que se enrola o céu retirado como livro que se enrola o céu retirado como livro que se enrola o céu retirado como livro que se enrola o céu retirado como livro que se enrola o céu retirado como livro que se enrola o céu retirado como livro que se enrola

TORNAR AOS CÉUS

TOMAR OS CÉUS DE ASSALTO



Waly Salomão, Me segura qu`eu vou dar um troço, 1972

5 de out. de 2014

reencontros com a máquina, ou da iluminação III

[...] Às vezes, como um alívio para a caminhada nas ruas da cidade, retira-se para Hampstead Heath. Lá, o ar é suave e quente, os caminhos são cheios de jovens mães empurrando carrinhos ou conversando umas com as outras enquanto os filhos correm. Tanta paz e contentamento! Costumava não ter paciência com poemas sobre flores desabrochando e leves aragens soprando. Agora, na terra onde esses poemas eram escritos, começa a entender como a alegria pode ser profunda com a volta do sol.
            Cansado, numa tarde de domingo, sobra o paletó como um travesseiro, estica-se no gramado e cai num sono, ou meio-sono, em que a consciência não desaparece, mas continua a pairar. É um estado que jamais experimentou: parece sentir no sangue o giro constante da Terra. Os gritos distantes das crianças, os pássaros cantando, o zunir dos insetos, ganham força e se fundem numa ode de alegria. Seu coração incha. Finalmente!, pensa. Finalmente ele chegou, momento de união extática com o Todo! Temendo que o momento se esvaia, tenta deter  estrépito de pensamento, tenta simplesmente ser um conduto para a grande força universal que não tem nome.
            Em tempo de relógio, esse sinal dura não mais que segundos. Mas, quando se levanta e sacode o paletó, está recuperado, renovado. Viajou pela grande cidade escura para ser testado e transformado, e aqui, neste retalho de verde sob o suave sol de primavera, surpreendentemente, chegou uma notícia de seu progresso. Se não foi absolutamente transfigurado, foi ao menos abençoado com um indício de que pertence a esta Terra.


J. M. Coetzee, Juventude, p.115-116

19 de set. de 2014

sobre os enigmas

O ovo e a galinha

      De repente olho o ovo na cozinha e só vejo nele a comida. Não o reconheço, e meu coração bate. A metamorfose está se fazendo em mim: começo a não poder mais enxergar o ovo. Fora de cada ovo particular, fora de cada ovo que se come, o ovo não existe. Já não consigo mais crer num ovo. Estou cada vez mais sem força de acreditar, estou morrendo, adeus, olhei demais um ovo e ele foi me adormecendo.
      A galinha que não queria sacrificar a sua vida. A que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si como numa iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia perder a si mesma. A que pensou que  tinha penas de galinha para se cobrir por possuir pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para que ela se distraísse totalmente enquanto o ovo se faria. A que não sabia que "eu" é apenas uma das palavras que se desenha enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que "eu" significa ter um si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um "eu" sem trégua. Nelas o "eu" é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a palavra "ovo". Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo precisava. Pois se elas não estivessem tão distraídas, se prestassem atenção à grande vida que se faz dentro delas, atrapalhariam o ovo.
      Comecei a falar da galinha e há muito já não estou falando mais da galinha. Mas ainda estou falando do ovo. 
      E eis que não entendo o ovo. Só entendo ovo quebrado: quebro-o na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem já viu o ovo, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.


Clarice Lispector, em A legião estrangeira

30 de mai. de 2014

Das aventuras inúteis

Caderno de aprendiz

[...]
34
Ele sabia que as coisas inúteis e os
homens inúteis
se guardam no abandono.
Os homens no seu próprio abandono.
E as coisas inúteis ficam para a poesia.


35
Eu queria fazer parte das árvores como os
pássaros fazem.
Eu queria fazer parte do orvalho como as
pedras fazem.
Eu só não queria significar.
Porque significar limita a imaginação.
E com pouca imaginação eu não poderia
fazer parte de uma árvore.
Como os pássaros fazem.
Então a razão me falou: o homem não
pode fazer parte do orvalho como as pedras
fazem.
Porque o homem não se transfigura senão
pelas palavras.
E era isso mesmo.

Manoel de Barros, Menino do mato

3 de abr. de 2014

uma chegada iminente

Ideia do amor

       Viver na intimidade de um ser estranho, não para nos aproximarmos dele, para o dar a conhecer, mas para o manter estranho, distante, e mesmo inaparente - tão inaparente que o seu nome o possa conter inteiro. E depois, mesmo no meio do mal-estar, dia após dia, não ser mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único, essa coisa, permanece para sempre exposta e murada.

Giorgio Agamben, Ideia da prosa


12 de mar. de 2014

acaso

Hexagrama 32: Heng ou a duração

            A duração é um estado em que obstáculos não conseguem esgotar o movimento. Não é uma condição de repouso, pois a mera imobilidade significa na verdade um retrocesso. A duração é o movimento de uma totalidade organizada e completa em si mesma. Esse movimento está sempre se renovando. Ele se realiza segundo leis imutáveis e cada término dá lugar a um novo começo. O objetivo atingido por um movimento na direção interna: a inspiração, a sístole, a contração. Esse movimento se transforma num novo começo tomando a direção externa: a expiração, a diástole, a expansão.

Os corpos celestes movem-se em duas órbitas e por isso sua luminosidade perdura. As estações seguem uma lei invariável de mutação e transformação, e por isso têm uma ação duradoura. Assim também, o caminho do homem que segue seu destino tem um sentido duradouro: desse modo o mundo se estrutura e ganha forma. Naquilo que dá às coisas duração pode-se reconhecer a essência de todos os seres no céu e na terra.

I Ching