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5 de out. de 2014

reencontros com a máquina, ou da iluminação III

[...] Às vezes, como um alívio para a caminhada nas ruas da cidade, retira-se para Hampstead Heath. Lá, o ar é suave e quente, os caminhos são cheios de jovens mães empurrando carrinhos ou conversando umas com as outras enquanto os filhos correm. Tanta paz e contentamento! Costumava não ter paciência com poemas sobre flores desabrochando e leves aragens soprando. Agora, na terra onde esses poemas eram escritos, começa a entender como a alegria pode ser profunda com a volta do sol.
            Cansado, numa tarde de domingo, sobra o paletó como um travesseiro, estica-se no gramado e cai num sono, ou meio-sono, em que a consciência não desaparece, mas continua a pairar. É um estado que jamais experimentou: parece sentir no sangue o giro constante da Terra. Os gritos distantes das crianças, os pássaros cantando, o zunir dos insetos, ganham força e se fundem numa ode de alegria. Seu coração incha. Finalmente!, pensa. Finalmente ele chegou, momento de união extática com o Todo! Temendo que o momento se esvaia, tenta deter  estrépito de pensamento, tenta simplesmente ser um conduto para a grande força universal que não tem nome.
            Em tempo de relógio, esse sinal dura não mais que segundos. Mas, quando se levanta e sacode o paletó, está recuperado, renovado. Viajou pela grande cidade escura para ser testado e transformado, e aqui, neste retalho de verde sob o suave sol de primavera, surpreendentemente, chegou uma notícia de seu progresso. Se não foi absolutamente transfigurado, foi ao menos abençoado com um indício de que pertence a esta Terra.


J. M. Coetzee, Juventude, p.115-116