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27 de fev. de 2015

ensaio para o voo

Sobre o controle da velocidade na aterrizagem

Aventura maior é voltar pra casa: é abrir o portão de entrada
Os desejos se embaralham ao longo dos caminhos
obrigação
1 não criar expectativa alguma 2 acolher o movimento de partir 3 abrir-se aos encontros
o vento leva e traz os grãos de areia espalhados no piso de cimento onde tenho os dois pés

exercício da presença na impermanência
perfeição: o som do clarinete, o frescor da água vermelha, a calma na pedra quente, as nuvens que
trafegam no céu azul... o tempo é outro, somos o lugar aparte
e ali, todo passo é sempre um lance na direção do
abismo,
pedra dura e úmida
verde é a raiz firme que penetra na terra, que sustenta e
desliza musgo limo
do alto da pedra, saltar na água, cair de bunda só pra formar o maior arco-íris
carregar a marca da queda como um presente
toque, tatuagem, corte, nossos pontos de contato são também cicatrizes que podemos
afagar
preciosas
são cidades que habitamos, para onde fugimos,
vasculhamos e reviramos um punhado de cascalho compulsivamente
até encontrar as mãos vazias outra vez

a experiência de voltar para o mesmo lugar
com o foco alterado o mundo parece turvo e disforme
muita água na terra, nas pedras, na retina
onde se guarda tudo isso? Como estar em pé, firme, imóvel, na superfície escorregadia?

São muitos tempos que voltam e coabitam o agora,
carrego no ventre o que se chama cristal de mil faces cortantes, pedra leve
em cada lâmina o reflexo da vida e da morte, sua grandeza e força mobilizadora
diante delas, ofereço minha mudez, meu riso nervoso e minha inevitável entrega
dessa dança algo sempre resta, algo
queda

meus dedos coçam enquanto tento alcançar um raciocínio
simples, muito simples
que me permita apenas
gozar
a imensidão surpreendente de estar aqui
enquanto a água corre, murmura, cicia, gargalha e grita estrondosamente
me engolindo com seus fluxos e esmagando de uma vez as nossas pretensões racionais
resta apenas a ideia
planar nesse abismo como pássaro
como borboleta
como o inseto que descobrimos tantas manhãs
sozinho
estranho
de pernas para o ar



eh

3 de fev. de 2015

a chapada diamantina e depois

Poema jet-lagged


Viajar, para que e para onde,
se a gente se torna mais infeliz
quando retorna? Infeliz
e vazio, situações e lugares
desaparecidos no ralo,
ruas e rios confundidos, muralhas, capelas,
panóplias, paisagens, quadros,
duties free e shoppings...

Grande pássaro de rota internacional sugado
Pelas turbinas do jato.

E ponte, funicular, teleférico, catacumbas
do clube do vinho, sorbets, Jerez, scanners,
hidrantes, magasin d`images et de signes,
seven types of ambiguity,
todas as coisas
perdem as vírgulas que as separam
explode-implode um vagão lotado de conectivos
o céu violeta genciana refletido
na agulha do arranha-céu de vidro
estações megalivrarias bouquinistes
la folie du voir bistrôs cinemas cidades
países inteiros engolfados no bueiro.

Alta cozinha e junk food alternam-se
O carnaval caleidoscópico das ruas
onde a dura liga metálica das línguas
se derrama no vigor demótico tatibitate
full of bullshit dos motherfuckers and
mothersuckers e fuck up yourself up.
É de dia? É de manhã? É de tarde? É de noite?
Dormindo? Acordado? Sonâmbulo?
Diâmbulo ou noctâmbulo?
Como uma flecha, rasgar o regaço da língua
materna. Da cálida vagina, como uma flecha
disparada.
Como uma flecha: o multilinguismo é o alvo.
Busco “los papeles rotos de las calles”
e num retângulo da muralha de Girona tornado
dorso de um tigre para a algaravia de um Deus,
eis que decifro:

És quan dormo que hi veig clar!!!

[...]
O caos como um jogo de armar, um jigsaw
puzzle cósmico. O mundo como um jogo
que se desarma. A lua verde-esmeralda
dos esgotos de Natitingou, Cotonou, Abidjan
salta de continente e brilha incontinente na tela
do rosto alvejado de gesso
da bicha Nossa Senhora das Ramblas
explorada por um gigolô cruel
e encurralada por handycams japonesas.
A rua é rua-rua ou realidade virtual interativa?

[...]
Mas ficar, para que e para onde,
se não há remédio, xarope ou elixir,
se o pé não encontra chão onde pousar,
embora calçado no topatudo inglês
do Dr. Martens
(a sensação de ter enfiado o pé na jaca)
se viajar é a única forma de ser feliz
e pleno?

Escrever é se vingar da perda.
Embora o material tenha se derretido todo,
igual queijo fundido.

Escrever é se vingar?
Da perda?
Perda?
Embora? Em boa hora.


Wally Salomão, Algaravias