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31 de jul. de 2015

after London...

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        Sir William concedia três quartos de hora a cada um dos seus pacientes; e nessa ciência exigente que lida com aquilo de que nada se sabe, em suma – o sistema nervoso, o cérebro humano -, se um médico perde o senso da medida, então está fracassado como médico. Saúde é o que se deve ter; e saúde é medida; de modo que, quando um homem nos entra no consultório e diz que é Cristo (uma ilusão comum) e que tem uma mensagem, como a maioria deles, e ameaça, como geralmente fazem, com o suicídio, tem-se de invocar a medida; prescrever repouso na cama; repouso na solidão; silêncio e repouso; repouso sem amigos, sem livros, sem mensagens; seis meses de repouso; até que um homem que nos chega com cinquenta quilos saia pesando oitenta.
            Medida, divina medida, deusa de Sir William, que Sir William adquirira visitando hospitais, pescando salmão, engendrando um filho, em Harley Street, por intermédio de Lady Bradshaw, que também pescava salmão e tirava fotografias que mal se distinguiam das obtidas por profissionais. Com sua adoração pela medida, Sir William não só prosperava pessoalmente como fazia prosperar a Inglaterra, isolando-lhe os lunáticos, proibindo-lhes procriarem, incriminando o desespero, impedindo os incapazes de propagarem suas ideias até que estes também compartilhassem do seu senso da medida – o seu, se eram homens, o de Lady Bradshaw, se eram mulheres (ela bordava, fazia trabalhos de agulha, passava quatro noites por semana em casa com o filho), de modo que não apenas os colegas o respeitavam, e temiam-no os subordinados, mas os amigos e a parentela de seus pacientes lhe dedicavam a mais viva gratidão, por insistir em que aqueles proféticos Cristos e Cristesas, tomassem leite na cama, como Sir William prescrevia; Sir William, com seus trinta anos de experiência desses casos, o seu infalível instinto: isto é loucura, isto é senso; o seu senso da medida.
            Mas a medida tem uma irmã, menos sorridente, mais formidável, uma deusa agora mesmo empenhada – no sol e areias da Índia, na lama e pântanos da África, nas cercanias de Londres, em toda parte, enfim, onde o clima ou o Diabo tentam o homem a abandonar a verdadeira fé, que é a dela própria -, agora mesmo empenhada, sim, em derrubar altares, desperdiçar ídolos e erigir no lugar deles o seu austero porte. Conversão é o seu nome, e regala-se na vontade dos débeis, pois ama convencer, impor-se, e adora as próprias feições estampadas na face do populacho. Em Hyde Park Corner, predica, sobre um barril; veste-se de branco e vai penitencialmente disfarçada de fraternidade, por fábricas e parlamentos; oferece auxílio, mas deseja poder; afasta brutalmente do caminho o dissidente ou o insatisfeito; outorga a sua bênção àqueles que, erguendo a cabeça, recebem submissamente, dos olhos dela, a luz dos próprios olhos. Essa potestade também (Rezia Warren Smith adivinhou-o) tinha sua morada no coração de Sir William, embora oculta, como quase sempre, sob algum plausível disfarce, algum venerável nome: amor, dever, sacrifício. Como não devia ele trabalhar! Que de esforços para obter fundos, propagar reformas, fundar instituições. Mas a Conversão, deusa importuna, ama o sangue mais que a pedra, e regala-se mais refinadamente na vontade humana. Por exemplo, Lady Bradshaw. Quinze anos antes havia-se submetido. Nada que se notasse, afinal; nenhuma cena, nenhum ruído; apenas o moroso afundamento, o lento naufrágio da sua vontade na dele. Doce era o seu sorriso, atenta a sua submissão; as ceias em Harley Street, de oito ou nove pratos, e que reuniam de dez a quinze colegas, eram tranquilas e urbanas.
            Somente, enquanto a noite avançava, um levíssimo enfado, ou constrangimento talvez, um gesto nervoso, embaraço, desassossego ou confusão indicavam – coisa penosa de crer – que a pobre senhorita mentia. Em outros tempos, há muito, ela pescara salmão livremente; agora, pronta a atender à sede de domínio, de poder, que ardia untuosamente nos olhos do marido, ela diminuía-se, recolhia-se, apagava-se, apenas aparecia; de modo que, sem que se soubesse ao certo o que tornava desagradável o serão e punha um peso na cabeça (o que bem se podia atribuir à conversação profissional ou à fadiga de um grande médico, cuja vida, dizia Lady Bradshaw, “não era sua, mas de seus pacientes”), os convidados, quando o relógio batia as dez, respiravam com delícia o ar de Harley Street; alívio este que, no entanto, era vedado aos pacientes de Bradshaw.



Virginia Woolf, Mrs. Dalloway (trad.: Mário Quintana), p.97-99