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18 de ago. de 2015

isso que nos atravessa, o outro

           O vitral

           Desde muito, ela sabia que o aniversário, este ano, seria num domingo. Mas só quando faltavam quatro ou seis semanas, começara a ver na coincidência uma promessa de alegrias incomuns e convidara o esposo a tirarem um retrato. Acreditava que este haveria de apreender seu júbilo, do mesmo modo que o da Primeira Comunhão retivera para sempre os cânticos. 
         - Ora... Temos tantos... - respondera o homem. Se tivéssemos filhos... Aí, bem. Mas nós dois! Para que retratos? Dois velhos!
         A mão esquerda, erguida, com o indicador e o médio afastados, parecia fazer da solidão uma coisa tangível - e ela se reconhecera com tristeza no dedo menor, mais fino e recurvo. Prendera grampos aos cabelos negros, lisos, partidos ao meio, e levantara-se. 
        -        Está bem. Você não quer... 
         (A voz nasalada, contida, era um velho sinal de desgosto.) 
       - Suas tolices, Matilde... Quando é isso? 
       Como se a ideia a envergonhasse, ela inclinara a cabeça: 
       - Em setembro - dissera. No dia vinte e quatro. Cai num domingo e eu... 
       - Ah! Uma comemoração - interrompera o esposo. Vinte anos de casamento... Um retrato ameno e primaveril. Como nós. 
        Na véspera do aniversário, ao deitar-se, ela ainda lembrara essas palavras; mas purificara-se da ironia e a repetira em segredo, sentindo-se reconduzida ao estado de espírito que lhe advinha na infância, em noites semelhantes: um oscilar entre a espera de alegrias e o receio de não as obter. 
         Agora, ali estava o domingo, claro e tépido, mas não com as alegrias sonhadas sonhadas, sem o que tudo mais se tornara inexpressivo. 
        - Se você não quiser, eu não faço questão do retrato - disse ela. Foi tolice. 
        - O fotógrafo já deve estar esperando. Por que não muda o penteado? Ainda há tempo. 
        - Não. Vou assim mesmo. 
        Abriu a porta, saíram. Flutuavam nas raras nuvens brancas, as folhas das aglaias tinham um brilho seco. Ela deu o braço ao marido e sentiu, com espanto, uma anunciação de alegrias no ar, como se algo em seu íntimo aguardasse aquele gesto. 
        Seguiram. Soprou um vento brusco, uma janela se abriu, o sol flamejou nos vidros. Uma voz forte de mulher principiou a cantar, extinguiu-se, a música de um acordeão despontou indecisa, cresceu. E quando o sino da Matriz começou a vibrar, com uma paz inabalável e sóbria, ela verificou, exultante, que o retrato não ficaria vazio: a insubstancial riqueza daqueles minutos o animaria para sempre. 
       - Manhã linda! - murmurou. Hoje eu queria ser menina. 
       - Você é. 
       A afirmativa podia ser uma censura, mas foi como um descobrimento que Matilde a aceitou. Seu coração bateu forte, ela sentiu-se capaz de rir muito, de extensas caminhadas, e lamentou que o marido, circunspecto, mudo, estivesse alheio à sua exultação. Guardaria, assim, através dos anos, uma alegria solitária, da qual Antônio para sempre estaria ausente. 
       Mas quem poderia assegurar, refletiu, que ele era, não um participante de seu júbilo, mas a causa mesmo de tudo que naquele instante sentia; e que, sem ele, o mundo e suas belezas não teriam sentido? 
         Essas perguntas tinham o peso de afirmativas e ela exclamou que se sentia feliz. 
        - Aproveite - aconselhou ele. Isso passa. 
       - Passa. Mas qualquer coisa disto ficará no retrato. Eu sei. 
         As duas sombras, juntas, resvalavam no muro e na calçada, sobre a qual ressoavam seus passos. 
       - Não é possível guardar a mínima alegria - disse ele. Em coisa alguma. Nenhum vitral retém a claridade. 
       Cinco meninas apareceram na esquina, os vestidos de cambraia parecendo-lhes comunicar sua leveza, ruidosas, perseguindo-se, entregues à rua, abriram um portão, desapareceram. 
       Ela apertou o braço do marido e sorriu, a sentir que um júbilo quase angustioso jorrava de seu íntimo. Compreendera que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. "Que este momento me possua, me ilumine e desapareça - pensava. Eu o vivi. Eu o estou vivendo". 
        Sentia que a luz do sol a trespassava, como um vitral. 



Osman Lins, em Os gestos

3 de ago. de 2015

ave rara pulsante

           Seguimos ao longo da praia, sem destino. Em grandes haustos, respiramos setembro. Os instantes são dias. Cresce, neste passeio em que tardes e noites se concentram, meu amos por Cecília, a precisão de incorporá-la à minha vida (ou de incorporar, à sua vida, a minha), crescem a nossa intimidade e o mútuo conhecimento. Hermenilda ou Hermelinda não mente quando diz que sou homem das letras e dos livros. Planejo escrever. Para quê? A certa altura do seu governo, tão prolongado, Vargas preocupa-se com as saúvas. Podia ter inventado, como programa, multiplicar os pássaros e os tamanduás. Escrever, para mim, virá talvez a adquirir, algum dia, um sentido mais preciso e elevado. No momento, representa um modo de não sucumbir, de não ir levando ao azar a minha vida. Uma decisão artificial, Cecília. Honesta, contudo. Invento, ao mesmo tempo que as formigas, pássaros imaginários e tamanduás com língua de fogo. Jogar umas palavras contra outras, exercer sobre elas uma espécie de atrito, fustigando-as, até que elas desprendam chispas: até que saltem, dentre as palavras, demônios inesperados. Numa sociedade como a nossa, da qual, mais ou menos como os seus clientes do Hospital Pedro II, desconfio e que não me atrai, é, com atritar as consciências – até que estas, igualmente, façam-se em chamas e incendeiem o arcabouço velho -, o que resta fazer. Ambas, vê-se bem, atividades mais ou menos gratuitas, e, em certo sentido, fora da lei. Estou longe de ter as virtudes exigidas para incendiar as consciências, como faz, na zona canavieira, Francisco Julião. Falta-me a energia cega dos reformadores; e com a minha tendência, talvez arcaica, para raciocinar com todos os dados dos problemas, custaria muito a decidir-me sobre os valores que devem ser incinerados ou substituídos. Nem, ao menos, sei dizer com segurança se a profissão que você exerce, fraterna e retificadora, é mesmo adequada à realidade que vivemos. Ela pode dar um sentido à sua vida. Mas, verdadeiramente, tem sentido hoje? Não sou capaz de responder, Cecília. Resta-me, então, por este modo recusando todas as estúpidas formas oficiais de viver, isto que suponho ficar em minha alçada – intentar maquinações com as palavras. Projeto desesperado e enleante.


Osman Lins, Avalovara, p.182-183.