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18 de dez. de 2016

incendiar

Q.
Enquanto Copi, sofregamente, segurava o pincel, dois raciocínios a assustavam: o primeiro era de que havia muita palavra no mundo, muito mais do que gente.
E o segundo de que o que nos liga ao passado, a memória (que rege essas inúmeras fantasias eletivas que chamamos de lembranças) empalidece ao sinal do primeiro desejo.


R.
“Quando você se transformou...”
“Nisso?! Nessa coisa?”
“Não foi isso que...”
“Há duas maneiras de lidar com o desejo: ou você apaga com o extintor, que é o que as pessoas geralmente fazem, ou você deixa o fogo se alastrar. Eu resolvi me incendiar.”
“Mas você tinha um bom emprego...”
“Um bom emprego? Jornalista? Em Mendoza? É tudo prostituição, meu caro, tudo, uns vendem o corpo, outros a cabeça, alguns seu tempo, é tudo putaria, todo mundo dá o cu.”
“E a sua família?”
“Travesti não tem família, ao menos de onde eu venho, não mesmo.”



Carlos Henrique Schroeder, As fantasias eletivas

23 de nov. de 2016

sublimação

[ a partir da pergunta-convite da ana]


muitos dizem que é preciso se resguardar e
cultivar a certeza que protege do deslize
foi segunda ou terça ou quarta
esqueço rotineiramente
e também não é impossível
ver com outros olhos
por exemplo
a tua mirada de
canto
como quem
para acertar o alvo
incisivamente
desvia
e finge que desiste
psiu
ainda estou na tua frente
foi rápido
instauramos a bagunça excepcional
resta
a partir da fissura
nadar
andar
até
o porto
a praia
a rua
inteira
adiar não adianta
nada mesmo
o oceano imenso ali
alhures
essa página
areia
fina
em que traço tanto
o maior desejo
fagulha
arrisco
trans
for

mar


eh

outra vez

[a partir de uma outra pergunta-convite]


foi no café se bem me lembro
não
inexata ontem
a mão na alça da xícara
de chá
o tropeço colossal
era para sair do tédio que dança
mos em descompasso
tanto dispêndio as palavras outra vez soltas
alguém ainda tenta encontrar o fio da meada
e consome
taquicardia contínua
você me dizia da resignação maior
conformado, morrer um pouco todo dia
baixar o olhar, os braços pensos
acompanhavam quase rígidos o movimento do corpo
caminhamos ao lado
não

talvez seja isso:
sobre os modos da continuação
a previsão permanente é
sucumbir
o apagão
na iminência
uma questão de tempo
uma questão de pulso
dia e noite
há escapatória?

do esgotamento
ela grita que não entende o que isso quer dizer
amor
não
sinto que devo, muito
masoquista
a carne em frangalhos
chorou e insistiu em sua narrativa
outra vez
mas não sabe como é ser profissional

o que dura mesmo são os fungos na beirada da panela
não
a fórmula alquímica
a carta ridícula
despojos preciosos na intempérie
nossa casa
não
meu alívio é ter uma pergunta para responder
e a possibilidade de calar
o que te cura da dor?

se chegarmos ao ápice, haverá outra versão
possível talvez
desejo
não
paramos por aqui


eh

uma versão possível

[a partir da pergunta-convite de Iara]







pela circunavegação bissexta,
outra vez também eu tonta tento responder todo dia um pouco menos ridícula, um tanto mais esdrúxula falo sem falta com vocês


Eu sou aquela que contém
também
pronta a atacar sem dó
defendo os muros que escolhi erguer
o esforço diário de não baixar a guarda
de não levantar a saia
sempre
sentir o ar passando
pelas pernas
o prazer


eu sou aquela que acolhe
que se abre
e dá
e casa
álibi
com os braços, seguro, apoio sobre as ancas
encaixado na curva da cintura o projeto
da casa o projeto
da vida
horas e horas e horas empilhando uma peça sobre a outra:
a imagem sonhada
cria
lugar precioso que
habito, e
desmorono também


eu sou aquela que desliza
que espera até ter certeza
e recua sem pestanejar
vento que antecede a
tempestade o sangue
que não
vem


eu sou aquela que lê
que coleta os sinais
desvenda
e finge não ouvir,
que forja o não saber
nada
se irrita
rouba e abala
extermina as chances da diferença em nome da
adequação segura
Morre.
Mato.
Cria.
Parte.


Eu sou aquela que nutre
que retira as comidas estragadas da geladeira
as cascas soltas e insistentes da cebola se espalhando
decide desorganiza o alimento
as especiarias todas
as poções
que ele busca no portão
a pitada
bálsamo
veneno para o descanso
a ignorância


sou a que escreve cartas
que não termina
a cabeça dói
o corpo quente
o vizinho cortando a grama o dia inteiro esse barulho de máquina
a praia ao lado
eu recuo
ressaca
braba
outra vez também
acalmaria

eh

12 de out. de 2016

a arte de evaporar quando a temperatura sobe

Para o meu amante voltando para a esposa
Ela está bem aqui.
Ela foi cuidadosamente esculpida para você
saída de sua infância
saída dentre seus cem colegas de escola preferidos.
Ela sempre esteve aqui, meu bem.
Ela é de fato extraordinária.
Fogos de artifício no meio do sempre maçante Fevereiro
e tão real como uma panela de ferro fundido.
Vamos ser sinceros, eu fui passageira.
Um artigo de luxo. Um veleiro vermelho-brilhante no cais.
Meu cabelo para fora da janela do carro, esvoaçante como fumaça.
Mariscos fora de época.
Ela é mais do que isso. Ela é o que você tem de ter, 
ela semeou seu crescimento prático, tropical.
Ela não é uma experiência. Ela é toda harmonia.
Ela cuida para que no bote salva-vidas haja remos e ganchos,
coloca flores do campo na janela para o café-da-manhã,
ao meio-dia senta-se à roda do oleiro,
criou três filhos sob a lua, 
três querubins desenhados por Michelangelo,
fez isso com as pernas abertas
nos terríveis meses na capela.
Se você olhar para cima, as crianças estão lá
como balões delicados que descansam no teto.
Ela também carregou cada uma pelo corredor
depois do jantar, suas cabeças inclinadas,
duas pernas protestando, íntimas, pessoa contra pessoa,
o rosto corado com uma canção e soninho.
Eu devolvo seu coração.
Eu dou meu consentimento –
para o detonador dentro dela, latejando
na lama com raiva, para a sua cadela interior
e o enterro das suas feridas –
para enterrar viva a ferida, pequena e vermelha –
para a pálida tremelicante labareda debaixo de suas costelas,
para o marinheiro bêbado que aguarda em seu pulso esquerdo,
para o joelho materno, para a meia,
para a cinta-liga, para a chamada –
a estranha chamada
você vai se esconder nos braços e nos seios
e puxar a fita cor de laranja do cabelo dela
e atender a chamada, a estranha chamada.
Ela é tão nua e única
Ela é a soma de você mesmo e o seu sonho.
Escale-a como um monumento, passo a passo.
Ela é sólida.
Quanto a mim, sou uma aquarela.
Eu evaporo.


Anne Sexton, em tradução de Adelaide Ivanova, tirado daqui