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31 de jul. de 2016

acontecer é irreversível

Tenho quebrado copos


Tenho quebrado copos
é o que tenho feito
raramente me machuco embora uma vez sim
uma vez quebrei um copo com as mãos
era frágil demais foi o que pensei
era feito para quebrar-se foi o que pensei
e não: eu fui feita para quebrar
em geral eles apenas se espatifam
na pia entre a louça branca e os talheres
(esses não quebram nunca) ou no chão
espalhando-se então com um baque luminoso
tenho recolhido cacos
tenho observado brevemente seu formato
pensando que acontecer é irreversível
pensando em como é fácil destroçar
tenho embrulhado os cacos com jornal
para que ninguém se machuque
como minha mãe me ensinou
como se fosse mesmo possível
evitar cortes
(mas que não seja eu a ferir)
tenho andado a tentar
não me ferir e não ferir os outros
enquanto esgoto o estoque de copos
mas não tenho quebrado minhas próprias mãos
golpeando os azulejos
não tenho passado a noite
deitada no chão de mármore
estudando as trocas de calor
não tenho mastigado o vidro
procurando separar na boca
o sabor do sangue do sabor do sabão
nem tenho feito uma oração
pelo destino variado
do que era antes um
e por minha força morre múltiplo
tenho quebrado copos
para isso parece deram-me mãos
tenho depois encontrado
cacos que não recolhi
e que identifico por um brilho súbito
no chão da cozinha de manhã
tenho andado com cuidado
com os olhos no chão
à procura de algo que brilhe
e tenho quebrado copos
é o que tenho feito


Ana Martins Marques

13 de jul. de 2016

a mínima inclinação (ou sobre o que dura não)

Não comece. Depois de começar, você se dará conta de que não existe mais caminho de volta. Mesmo que você retorne e tente apagar as pegadas dos passos já dados, eles nunca serão desfeitos. Mesmo que nenhum traço sobre daquelas pisadas, elas foram dadas e, se não há restos aparentes no chão, em você, ao menos, elas nunca mais se apagarão. Por isso, é melhor preservar-se ileso, na visão preliminar do começo e, quem sabe, fingir que se vai começar, para que os tolos pensem que isso de fato vai acontecer. Você se posta na iminência do começo, ensaia uns gestos que aparentam prontidão para ele e pronto. Todos irão embora acreditando que dali certamente sairá um começo, e você fica ali, não começado. Se eles voltarem e perguntarem por que você ainda não deu o primeiro passo, você continua ameaçando dá-lo e todos entenderão que isso não aconteceu por razões sérias e incomunicáveis. Se esse teatro for de difícil execução, retire-se. Escondendo-se, haverá álibis para o fato de você não ter começado e todos entenderão sua recusa. Será como se você não só já tivesse começado, mas como se estivesse no meio. Pense que não começar é a única forma de não disparar um processo incontornável de sofrimento. Mesmo que você só dê um único passo, será como colocar a peça errada no tabuleiro de xadrez. Assim são os começos. Não pense que ao encostar o pé no chão poderá arrepender-se. Basta um gesto; basta inclinar o corpo um pouco para frente, deslocar o peso das pernas e levantar os dedos. Não os levante. Mas não pense, por outro lado, que será fácil a decisão de não começar. Não pense que poderá simplesmente esquecer-se disso. Não. Os não começadores precisam estar em constante estado de atenção, porque a qualquer momento você pode começar sem nem se dar conta e todo o trabalho de não ter começado terá sido desperdício. Não sobrará pedra sobre pedra e você não será diferente daqueles que nem se importam em começar e vão despreocupadamente começando qualquer coisa que aparece. Não pense que todo o trabalho de preparação mudará alguma coisa. Você será como eles. Por isso, não descanse. Não começar é mais desafiador que o contrário. A vantagem é que o sofrimento é menor, embora o desgaste tático seja maior. Se o não começador não se mantiver em estado de prontidão para o não começo, desavisadamente ele corre o risco de, num passo em falso, começar alguma coisa. E não só qualquer coisa, como justo aquela que ele mais temia; porque essa é a que fica à espera de um descuido para, num golpe baixo, disfarçar-se de outra coisa e, quando o não começador vê, é ela que se anuncia e o retorno é impossível. Os começos são mais poderosos do que parecem e do que qualquer força de resistência, já que seus meios são capciosos. Por isso, para evitar o começo, não bastam fortificações. É preciso armadilhas mínimas, quase invisíveis, para que eles não se entreteçam pelas beiradas.



Noemi Jaffe, no Livro dos começos

10 de jul. de 2016

falhamos casa não

Falésias

Hoje tivemos
um dia limpo
caminhamos e comemos
em silêncio

buscamos o ponto mais alto
da cidade e falamos
sobre uma casa
que não será construída

falamos sobre essa casa
implantada nas falésias
aberta
aos gritos do mar

falamos
dessa casa
cada vez mais improvável
onde nenhum de nós vai morar

voltamos em silêncio
eu pensando em certos bichos
que só se acasalam
com dificuldade


Ana Martins Marques, em Da arte das armadilhas, p.33.

5 de jul. de 2016

dar um passo a frente

Então, uma noite – era uma noite como muitas outras; havia umas doze ou catorze pessoas jantando [...], o sacerdote ex-ladrão de livros chegou e colocou um pequeno livro preto e branco na minha mão, dizendo: “Acho que isso pode interessa-la”. Eu o peguei, folheei a esmo, ainda determinada a servir nosso ensopado de carne, e me vi no meio do Uivo, de Allen Ginsberg. Soltei a concha, voltei ao começo e, de imediato, minha atenção foi capturada por aquela abertura triste e poderosa: “Vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura...” [...]
            O poema colocava certo peso em mim também. Concluí que, se havia um Allen, devia haver muito mais, outras pessoas, além de meus poucos amigos, escrevendo o que diziam, o que ouviam, vivendo, ainda que de maneira furtiva ou envergonhada, o que conheciam, escondendo-se aqui e ali como fazíamos – e agora, de repente, prestes a se manifestar abertamente. Porque eu senti que Allen era apenas, só podia ser, a vanguarda de algo muito maior. Todas as pessoas que, como eu, escondiam-se e esquivavam-se, escrevendo o que sabiam para um grupo pequeno de amigos – e até mesmo os amigos que afirmavam que aquilo “não poderia ser publicado”- esperando apenas com uma leve amargura a coisa acabar, que a era do homem chegasse ao fim em uma labareda de radiação – todos esses iam agora dar um passo a frente e se pronunciar. Não muitos os ouviram, mas eles, finalmente, ouviriam uns aos outros. Eu estava prestes a conhecer meus irmãos e irmãs.
            Havíamos chegado à maioridade. Eu estava assustada e um pouco triste. Eu sempre me apegara de forma instintiva à vida não convencional, fácil e espontânea que levávamos no lugar, nossa percepção tácita de que estávamos sós em um mundo estranho, uma percepção que nos mantinha orgulhosos e unidos. Mas, naquele momento, o arrependimento pelo que poderíamos estar perdendo estava enterrado sob uma sensação abrangente de regozijo, de alegria. Alguém estava falando por nós, e o poema era bom. Eu estava animada e encantada. Voltei para casa e para o jantar, e nós lemos Uivo juntos; eu li em voz alta para todo mundo. Uma nova era havia começado.
            Enquanto isso, as mudanças começavam a ocorrer à nossa volta, mais intensas e pesadas que nunca – de modo que nem nós podíamos deixar de notá-las. A primeira coisa que percebi e que me abalou muito foi que o lugar estava se esvaindo, estava gasto demais. Não aconteceu nada em particular, ele apenas começou a ficar com aquele ar, aquela sensação, quando você abre a porta e entra, de que o lugar não é habitado há algum tempo, de que o ar está parado. Os lugares fazem isso, já notei. Eles viram as costas sem avisar, se fecham, e, de repente, é como se você morasse em um necrotério ou em uma geladeira. O impulso vital que criava um lar, uma espécie de centro vivo, muda de direção como uma corrente oceânica, e aquela ilha específica não está mais no trajeto. Dá pra perceber, porque mesmo no auge do verão há um frio no ar, alguma coisa que penetra os ossos.


Diane di Prima, Memórias de uma beatnik, p. 195-197.

2 de jul. de 2016

salvaguardando

Autotomia

Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando-se semi-devorar pelo mundo, 
salvando-se com a outra metade.

Ela bifurca subitamente em naufrágio e resgate,
em despojo e promessa, no que foi e no que será.

Bem no meio do seu corpo se abre um precipício
com duas bordas, uma estranha à outra.

Numa das bordas, a morte, na outra, a vida.
Aqui, o desespero, ali, a coragem.

Se existe balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se justiça existe, ei-la aqui.

Morrer não mais que o necessário.
Renascer a partir do que se salvaguardou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo - e sussurro quebrado.
Em corpo - e poesia.

Aqui, a garganta, do outro lado, o riso, 
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o "não morrer completamente",
três palavras que são como as três plumas de um voo.

O abismo não nos divide. 
O abismo nos cerca.

Wislawa Szymborska