Páginas

19 de ago. de 2016

ao léu

Elogio ao meu marido

suponho que não tem sido fácil viver
comigo também, com meus piques, e altos
e baixos, a minha necessidade de privacidade
orgulho leonino chorando na cama quando você
está tentando dormir e você, interrompendo-me
no meio de mil poemas
chamei o pessoal do seguro?
a vez que você parou um poema
no meio da viagem entre as colinas de nebraska
e no colorado, odetta cantando,
o mundo inteiro cantando em mim
o triunfo da nossa revolução no ar
eu a ponto de anotar aquilo, e você
você está dizendo algo sobre o carburador
e tudo se desfez

mas nos agarramos um ao outro
como se cada um pensasse que o outro fosse um bote
embora à deriva, como nesta casa de barro
não tão grande, de paredes empoeiradas ao redor,
uma chuva de poeira fina contrariando o astral,
o ar fresco e entupindo nossas narinas
penduramos nossas fotos, de mundos tão diversos:
new york collage e posters de são francisco,
colocamos nossos pratos japoneses, talheres chineses
martelamos panos de enxoval indiano sobre a argila
esbarramos nos silêncios de nossas entranhas
desajeitados, de um lugar a outro
como crianças que fogem para brincar
num barco à noite
e o barco escapa das suas amarras,
e eles olham para as estrelas
sobre as quais nada sabem, tentando descobrir
para onde eles estão indo


Diane di Prima, em tradução de Vanderley Mendonça, na antologia “Meninas que vestiam preto”

2 de ago. de 2016

o incomensurável

um abraço

quando nos encontramos e nos abraçamos por apenas
alguns segundos, quando coloquei minha cabeça ao lado
da sua e o seu tronco por poucos instantes se colou
ao meu tronco, com minha mão pousada nas suas
costas, sobre sua pele, sobre sua coluna
vertebral, nisso que se define normalmente como um abraço
de cumprimento, de duas pessoas que não se veem há
algum tempo e por algum tempo se abraçam
para celebrar a alegria do encontro, do reconhecimento
do rosto, do corpo, da vida mútua, esse abraço
comemora, numa pequena intimidade, um encontro,
ainda que, de modo furtivo, um pequeno lapso de tempo, dois ou
três segundos, pouca coisa mais ou menos do que
isso, esse abraço que envolve meu tronco no seu tronco, de
onde brota o seu corpo, de onde nascem os seus membros
e por onde circulam fluidos e voltagens elétricas em rajadas ínfimas regulando o tônus que dá integridade ao seu corpo, que faz com que seu corpo esteja de pé,
na minha frente, comandando seus braços a se entrelaçarem
nos meus nessa configuração que caracteriza o abraço, esse e
qualquer outro, nesse abraço em que nossos corpos se tocaram e
que por parcos segundos senti sob a minha
mão suas costas, sua espinha dorsal e suas costelas sob meus
dedos, em que senti ou intuí que seu coração batia ali dentro
comandando a maquinaria do seu corpo, impulsionando
sua vida, pensamentos, sonhos, memórias, a prosseguir
no dia, no tempo, sob a minha mão espalmada em 
suas costas, sob a pressão delicada (ou dedicada) dos
meus dedos, o arcabouço que protege sua vida,
a vida que circula em seu tronco, por míseros instantes
colados ao meu tronco, quando seus seios se
colaram ao meu peito, quando seu coração
se aproximou do meu pelo tempo que costuma
durar o abraço, na duração dos braços e do tronco,
na duração do corpo, da mão espalmada sobre suas costas,
no tempo nem imenso e nem ínfimo que perdurou 
nesse abraço em que se abraçaram as vidas, os sonhos,
os pensamentos, os sorrisos entrelaçados, como os braços,
como os troncos aproximados, unos quem sabe, durante
um espaço de tempo incomensurável, eu diria, mas
efetivamente sentido pelo corpo e transmitido pelos meios
elétricos e químicos ao lugar em que se dá a geração
destas palavras, em que brotam as ideias que se
armazenam e perduram no meu corpo, que se abraçam à minha
vida a partir daquele abraço que pouco ou quase
nada durou em matéria de tempo cronológico, mas que
insiste ainda agora, aqui, quando me invade a forma
do seu tronco colado ao meu naquele dia em que nos 
encontramos

Caio Meira