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12 de out. de 2016

a arte de evaporar quando a temperatura sobe

Para o meu amante voltando para a esposa
Ela está bem aqui.
Ela foi cuidadosamente esculpida para você
saída de sua infância
saída dentre seus cem colegas de escola preferidos.
Ela sempre esteve aqui, meu bem.
Ela é de fato extraordinária.
Fogos de artifício no meio do sempre maçante Fevereiro
e tão real como uma panela de ferro fundido.
Vamos ser sinceros, eu fui passageira.
Um artigo de luxo. Um veleiro vermelho-brilhante no cais.
Meu cabelo para fora da janela do carro, esvoaçante como fumaça.
Mariscos fora de época.
Ela é mais do que isso. Ela é o que você tem de ter, 
ela semeou seu crescimento prático, tropical.
Ela não é uma experiência. Ela é toda harmonia.
Ela cuida para que no bote salva-vidas haja remos e ganchos,
coloca flores do campo na janela para o café-da-manhã,
ao meio-dia senta-se à roda do oleiro,
criou três filhos sob a lua, 
três querubins desenhados por Michelangelo,
fez isso com as pernas abertas
nos terríveis meses na capela.
Se você olhar para cima, as crianças estão lá
como balões delicados que descansam no teto.
Ela também carregou cada uma pelo corredor
depois do jantar, suas cabeças inclinadas,
duas pernas protestando, íntimas, pessoa contra pessoa,
o rosto corado com uma canção e soninho.
Eu devolvo seu coração.
Eu dou meu consentimento –
para o detonador dentro dela, latejando
na lama com raiva, para a sua cadela interior
e o enterro das suas feridas –
para enterrar viva a ferida, pequena e vermelha –
para a pálida tremelicante labareda debaixo de suas costelas,
para o marinheiro bêbado que aguarda em seu pulso esquerdo,
para o joelho materno, para a meia,
para a cinta-liga, para a chamada –
a estranha chamada
você vai se esconder nos braços e nos seios
e puxar a fita cor de laranja do cabelo dela
e atender a chamada, a estranha chamada.
Ela é tão nua e única
Ela é a soma de você mesmo e o seu sonho.
Escale-a como um monumento, passo a passo.
Ela é sólida.
Quanto a mim, sou uma aquarela.
Eu evaporo.


Anne Sexton, em tradução de Adelaide Ivanova, tirado daqui

11 de out. de 2016

uma madrugada úmida

FRAGMENTOS

1

Me quer? Não me quer? As mãos torcidas
os dedos
        despedaçados um a um extraio
assim se tira a sorte enquanto
                              no ar de maio
caem as pétalas das margaridas
Que a tesoura e a navalha revelem as cãs e
que a prata dos anos tinja sem perdão
                                   penso
e espero que eu jamais alcance
a impudente idade do bom senso

2

Passa da uma
            você deve estar na cama
Você talvez
           sinta o mesmo no seu quarto
Não tenho pressa
       Para que acordar-te
com o 
       relâmpago
                de mais um telegrama

3

O mar se vai
o mar de sono se esvai
Como se diz: o caso está enterrado
a canoa do amor se quebrou no quotidiano
Estamos quites
Inútil o apanhado
da mútua dor mútua quota de dano

4

Passa da uma você deve estar na cama
À noite a Via láctea é um Oká de prata
Não tenho pressa para que acordar-te
com o relâmpago de mais um telegrama
como se diz o caso está enterrado
a canoa do amor se quebrou no quotidiano
Estamos quites inútil o apanhado
da mútua dor mútua quota de dano
Vê como tudo agora emudeceu
Que tributo de estrelas a noite impôs ao céu
em horas como esta eu me ergo e converso
com os séculos a história o universo

5

Sei o pulso das palavras a sirene das palavras
Não as que aplaudem do alto dos teatros
Mas as que arrancam os caixões da treva
e os põem a caminhar quadrúpedes de cedro
Às vezes as relegam inauditas inéditas
Mas a palavra galopa com a cilha tensa
ressoa os séculos e os trens rastejam
para lamber as mãos calosas da poesia
Sei o pulso das palavras Parecem fumaça
Pétalas caídas sob o calcanhar da dança
Mas o homem com lábios alma carcaça


Maiakóvski (em tradução de Augusto de Campos)