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18 de dez. de 2016

incendiar

Q.
Enquanto Copi, sofregamente, segurava o pincel, dois raciocínios a assustavam: o primeiro era de que havia muita palavra no mundo, muito mais do que gente.
E o segundo de que o que nos liga ao passado, a memória (que rege essas inúmeras fantasias eletivas que chamamos de lembranças) empalidece ao sinal do primeiro desejo.


R.
“Quando você se transformou...”
“Nisso?! Nessa coisa?”
“Não foi isso que...”
“Há duas maneiras de lidar com o desejo: ou você apaga com o extintor, que é o que as pessoas geralmente fazem, ou você deixa o fogo se alastrar. Eu resolvi me incendiar.”
“Mas você tinha um bom emprego...”
“Um bom emprego? Jornalista? Em Mendoza? É tudo prostituição, meu caro, tudo, uns vendem o corpo, outros a cabeça, alguns seu tempo, é tudo putaria, todo mundo dá o cu.”
“E a sua família?”
“Travesti não tem família, ao menos de onde eu venho, não mesmo.”



Carlos Henrique Schroeder, As fantasias eletivas