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25 de abr. de 2015

nomadismos, a liberdade irrecuperável

Nos primeiros dias de suas novas caminhadas, no primeiro e ávido delírio da liberdade recuperada, Goldmund necessitou aprender novamente a viver a vida sem pátria e sem tempo, dos errantes. Não obedecer a ninguém, dependendo apenas das tormentas e das estações do ano, sem destino à sua frente, sem teto sobre a sua cabeça. Não possuindo nada de seu e sujeito a todos os acasos – os andarilhos levam uma vida ingênua e corajosa, miserável e intensa. São os filhos de Adão, aquele que foi expulso do paraíso, são irmãos dos animais, dos inocentes. Aceitam das mãos do céu, hora após hora, aquilo que lhes é oferecido; sol, chuva, neblina, neve, calor e frio, bem-estar e mal-estar; para eles não existe tempo, história, esforço, nem tampouco aquela idolatria estranha pelo desenvolvimento e progresso, em que os proprietários acreditam tão desesperadoramente. Um vagabundo pode ser delicado ou grosseiro, hábil ou desajeitado, corajoso ou medroso; dentro do seu coração ele não passa de uma criança; está sempre vivendo no primeiro dia, desde os primórdios da história do mundo e sua vida é orientada por poucos e simples instintos e necessidades. Pode ser inteligente ou tolo; pode ter consciência da sua profundidade interior, da mesma maneira que é frágil e passageira toda vida e como tudo que é vivo é pobre e passageiro, leva um pouquinho de sangue quente através do frio gelado do universo. Pode, outrossim, seguir ingênua e avidamente as imposições do seu pobre estômago – o andarilho é o eterno adversário e o inimigo mortal do proprietário e do sedentário que o detesta, despreza-o e teme, porque não quer ser lembrado da inconstância de todos os seres, do fenecer constante de tudo que é vivo, da morte gelada e inclemente que enche o universo à nossa volta. A ingenuidade da vida de vagabundo, sua origem materna, seu desprezo e renegação de leis e espírito, a vizinhança dissimulada e constante da morte, há muito haviam agarrado e marcado profundamente a alma de Goldmund. O fato de ele possuir inteligência e vontade, de ser um artista, tornava sua vida enriquecida, mas penosa. Cada vida só se torna rica e próspera através do desdobramento e do protesto. O que seria da razão e da sobriedade, sem o conhecimento do êxtase, o que seria do prazer dos sentidos, se atrás deles não estivesse a morte e o que seria do amor, sem a inimizade mortal das gerações?
O verão e o outono já declinavam; penosamente Goldmund atravessava meses de penúria; caminhava, encantado pela doce e perfumada primavera. As estações passavam tão depressa, cada vez mais rápido tombava o sol estival. Os anos fluíam e parecia que Goldmund se esquecera de que havia outra coisa no mundo que não fosse fome e amor e essa silenciosa e lúgubre corrida das estações do ano; parecia ter caído totalmente no mundo primitivo, maternal e instintivo. Porém em cada sonho, em qualquer momento de meditação, o olhar perdido nos vales floridos e emurchecidos, ele era todo olhares, era artista; sofria uma angústia torturante de evocar, através do espírito, a loucura da vida que se arrastava por aí, dando-lhe um sentido.

Herman Hesse, Narciso e Goldmund, p.151-152