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28 de dez. de 2020

ou ou

 

Imagem de Raisa Christina



É tudo tão simples,

sim, era tão simples,

é tão evidente

que mal consigo acreditar.

Para isto serve o corpo:

ou me tocas ou não me tocas,

ou me abraças ou me afastas.

O resto é para os loucos.


Patrizia Cavalli 

(Um pouco do meu sangue. Antologia de poesia italiana, edição Contracapa, seleção e tradução de João Coles)


um trator

 

Desenho: Priscilla Menezes

Outra vez o amor terminou


Outra vez o amor terminou, como uma boa safra de laranjas,


Ou como uma boa temporada de escavações, que extraiu das profundezas 

Coisas comovidas que buscavam o esquecimento. 


Outra vez o amor terminou. E como depois de se demolir

Uma casa grande e retirar os escombros, visitamos

O terreno vazio e quadrado e dizemos: como era pequeno 

O lugar onde ficava a casa 

Com tantos andares e tantas pessoas. 


E dos vales distantes chega


O som de um trator solitário,


E do passado distante chega o bater


Do garfo no prato de porcelana, misturando


E batendo gema de ovo com açúcar para o menino, 

E bate e bate. 


Yehuda Amichai


25 de dez. de 2020

espólio

Mulher que diz tchau

Levo comigo um maço vazio e amassado de Republicana e uma revista velha que ficou por aqui. Levo comigo as duas últimas passagens de trem.

Levo comigo um guardanapo de papel com minha cara que você desenhou, da minha boca sai um balãozinho com palavras, as palavras dizem coisas engraçadas.

Também levo comigo uma folha de acácia recolhida na rua, uma outra noite, quando caminhávamos separados pela multidão.

E outra folha, petrificada, branca, com um furinho como uma janela, e a janela estava fechada pela água e eu soprei e vi você e esse foi o dia em que a sorte começou.

Levo comigo o gosto do vinho na boca. (Por todas as coisas boas, dizíamos, todas as coisas cada vez melhores que nos vão acontecer.)

Não levo nem uma única gota de veneno. Levo os beijos de quando você partia (eu nunca estava dormindo, nunca).

E um assombro por tudo isso que nenhuma carta, nenhuma explicação, podem dizer a ninguém o que foi.


Eduardo Galeano

21 de dez. de 2020

praia da solidão

 



portanto por vezes os afogados

voltam à tona de água

pois desejam de novo atirar-se

ainda não esgotaram o desespero

ainda não esperam completamente

ainda temem que nada chegue

não sabem ainda que já ninguém virá

que mesmo  o mergulho foi em vão

que tudo a água lava, só a vida não


Bénédicte Houart


20 de dez. de 2020

além das cordilheiras

 

Cenas de um casamento, Ingmar Bergman (1973)


ADEUS

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastamos tudo menos o silêncio.
Gastamos os olhos com o sal das lágrimas,
gastamos as mãos à força de as apertarmos,
gastamos os relógios e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário, 
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é a verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastamos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
Já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugênio de Andrade

19 de dez. de 2020

nós ao avesso

 


No percurso, te incomodava saber que aquilo que os professores se esforçaram para falar durante a aula já se esvaía na mente dos alunos. E ali, naquele ônibus, olhando para todos eles, você percebia que esta fora sua luta cotidiana, talvez a única que valesse a pena: fazer a sua voz permanecer na cabeça deles o máximo de tempo possível. Entretanto, você tivera a impressão de nunca haver conseguido influenciar ninguém. Você estava com cinquenta e dois anos e tudo que você tinha nas mãos eram os livros, algumas provas e uma vontade doida de beber algo. Você desceu próximo a um boteco que costumava frequentar. Pediu uma cerveja. Em seguida pensou em Elisa. E pensar nela o fazia não prestar atenção no sabor da bebida. Você pensava em Elisa e bebia. Entrava numa espécie de roda-viva. O sabor amargo e a falta de Elisa. Outra cerveja. Em pouco tempo você estava bêbado. Na embriaguez parecia lidar melhor com a perda. A dor é amortecida. Era o que te ajudava a voltar para casa. Alto e flutuante. E depois só tinha tempo para tirar os sapatos antes de deitar na cama. Acordou de ressaca com seu despertador gritando. Estava frio e chuviscava. Ressaca, frio e chuva: a fórmula perfeita para ligar para a escola e mentir que estava doente. Mas não. Você levantou, porque não gostava de faltar. No caminho para a escola sentiu uma espécie de raiva de si mesmo por voltar ao abismo: a falta de Elisa. Mas era assim mesmo. Você já deveria ter aprendido. Quantas decepções afetivas você já tinha passado na vida, você se confortava. Resignou-se e tentou compreender o fim novamente. Regressou ao passado. Analisava as minúcias do relacionamento; as discussões, os silêncios e as mágoas. Não amei certo, você pensava, e se punia. Mas a vida segue porque, mesmo quando se ama errado, ainda temos de viver. O amor não impedia a vida. Continua-se porque os carros não param, homens e mulheres se levantam e  vão trabalhar. Todos os dias. Segue-se, não por bravura ou altivez, mas porque simplesmente não há o que fazer. E não há aí nenhum ensinamento ou lição a aprender. A não ser domar a tristeza e aceitar conviver com ela, você pensava. E, mesmo que Elisa continuasse a vir a seus pensamentos, e nos momentos mais impróprios, você lutava contra eles. Para isso, você precisava concentrar forças nas suas aulas. E talvez essa fosse a sua última lição antes de deixar o magistério: não mais influenciar seus alunos, mas se deixar influenciar por eles. Contagiar-se da ingenuidade deles e perceber com espanto as coisas novamente pela primeira vez. E nas aulas, talvez, superar a rua em que você e Elisa caminhavam, a padaria em que tomavam café, o caixa eletrônico em que pegavam dinheiro, o parque no inverno. Tudo ainda ali dentro de você, ainda cambaleando, você tentando superar numa sala com adolescentes desajustados as sobras de um afeto. Você que um dia pensou que aos cinquenta e dois anos saberia lidar com o fim das coisas. Mas a dor não escolhe idade quando quer doer, você pensava. Na parada, enquanto esperava o ônibus, teve vontade de chorar. Mas você se tornou um homem antigo. E homens antigos não choram em paradas de ônibus. Não por macheza ou para provar sua virilidade, mas porque não fica bem um homem antigo chorar em público, você pensava. Depois da escola, na volta pra casa, mantinha a cabeça baixa, mas ainda assim não chorava. [...] Você sabia que não havia sido um grande professor. Você apenas travou durante anos uma guerra particular, mas cumpriu a tarefa. Não abandonou o barco. E achava que isso já te redimia das aulas ruins que deu. Certa noite você baixou o volume do som, pegou o telefone pensando em ligar para Elisa, mas hesitou. Sempre hesitava. Mas até quando?

Jeferson Tenório, O avesso da pele, p.156-158

9 de dez. de 2020

o mau pedaço

 


Kasi com pássaro, 2018, Júlia Amaral


que nojo me dava

do amor

virando posse, das

pessoas virando cruas, do Pedro não

    entendendo nada com aqueles olhos

    inchados e duros,

seu amor por mim

escorria

virando

Ódio, virando

ímpeto.

[...]

que saudade de quando nada disso tinha

    acontecido

de todos os segundos antes disso ter acontecido. 

[...]

mas para mim era tudo tão

Tarde,

o tempo 

escorria sem

sono das minhas

mãos.


Aline Bei, O peso do pássaro morto, p.54-55

3 de dez. de 2020

( d e s ) p a r ê n t e s e s

Uma espécie de perda 


Usamos a dois: estações do ano, livros e uma música.

As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma cama.

Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados, gastos.

Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos. E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
 idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,

(– o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento) sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.

Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.

Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.


Ingeborg Bachmann


30 de nov. de 2020

o que se faz e desfaz

 

Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares, já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente.
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?


Ruy Belo

30 de out. de 2020

isto e aquilo, um corpo, uma vida

Pablo Picasso,  Garota diante do espelho

        Uma mulher de certa idade parada diante do espelho, nua, examinando esta ou aquela parte do corpo. Não faz isso há… vinte anos? Trinta? O ombro esquerdo, que ela projeta para a frente, para ver melhor – nada mau. Sempre teve bons ombros. E boas costas, comparadas – há muito tempo, claro – com as da Vênus de Rokeby. (Existem, talvez, muito poucas mulheres das classes educadas cujas costas não tenham sido comparadas, por amantes cegos de amor, com as da Vênus de Rokeby.) Mas era difícil enxergar as costas: o espelho não era grande. Os seios? Muitas jovens estariam contentes com eles. Mas espere... o que tinha acontecido com eles? Uma mulher pode ter seios como os de Afrodite (afinal pelo menos uma mulher deve ter tido), e a última coisa em que alguém vai pensar, olhando para eles, é em nutrição, mas eles se transformam em confortáveis tetas, e a dona deles pensa: para quê? Para acomodar a cabeça dos netos? Sem dúvida a época certa para aquelas tetas tinha sido quando fora mãe. (O que a Natureza estava aprontando?) Pernas. Bom, não estavam mal agora, mas melhor não pensar no que eram. Na verdade, havia tido um bom corpo, e ele mantinha sua forma (mais ou menos) até ela se movimentar. Então ocorria uma sutil desintegração, e certas áreas, apesar das boas formas, cobriam-se de finas rugas veludosas como um pêssego passado do ponto. Mas tudo isso era irrelevante. O que ela não conseguia encarar (mas que tinha de se forçar a enfrentar) era que qualquer moça, por menos favorecida que fosse, tinha uma coisa que ela não tinha. Jamais teria de novo. Era irrevogável. Não havia nada a fazer. Tinha vivido seu trajeto até esse ponto, e dizer “Bom, todo mundo vive”, não ajudava nada. Tinha vivido seu trajeto cheia de filosofia, como as pessoas acham que deve ser, e depois a carga de profundidade, e ela era como uma daquelas paisagens em que movimentos subterrâneos trazem à superfície uma dúzia de estratos, criados em épocas inteiramente diferentes e até então separados, revelando montanhas feitas de rochas vermelhas, verde-oliva, turquesa, limão, rosa e azul-escuro, todas numa única cadeia. Com toda a sinceridade, ela podia dizer que uma das camadas, ou várias, não se importava com aquela carcaça que envelhecia, mas havia uma outra tão vulnerável quanto a carne das rosas.  [...]
        Há duas fases nessa doença. A primeira quando a mulher olha, olha de perto: sim, aquele ombro; sim, aquele pulso; sim, aquele braço. A segunda quando ela se força a ficar diante de um espelho verdadeiro, para olhar fria e duramente para a mulher envelhecida, e se força a voltar ao espelho, mais e mais, porque sente que a pessoa que está olhando é exatamente a mesma (quando longe do espelho) que ela era aos vinte, trinta, quarenta anos. Ela é exatamente a mesma pessoa que era em menina e em jovem olhando no espelho e contando seus atrativos. Ela tem de insistir que isso é assim, essa é a verdade: não o que eu me lembro – isto é o que estou vendo, isto é o que eu sou. Isto. Isto. 

Doris Lessing, em Amor, de novo, p.254-255

29 de out. de 2020

entranha sinfonia

 

Imagem: da série Uterus de Catharina Suleiman


tu útero
tu foste paciente
como uma meia
enquanto eu guardei em ti
os meus filhos vivos e mortos
e agora
eles querem-te arrancar
como meias inúteis
para onde eu vou
para onde é que eu vou
velha menina
sem ti
útero
minha pegada ensanguentada
minha cozinha de estrogênio
meu saco negro de desejo
para onde posso eu ir
descalça
sem ti
para onde podes tu ir
sem mim


Lucille Clifton
(tradução de Bruno M. Silva, a partir da edição The collected poems of Lucille Clifton 1965-2010)





29 de jul. de 2020

sonhos docentes



Outro dia sonhei que estava dando aula. Alguém veio de fora e me chamou na porta pra resolver alguma coisa urgente, eu deixei a sala de aula e entrei numa saga infinita de coisas que não davam certo. Eu fiquei muito ansiosa pensando que precisava voltar, que não podia deixar os alunos sem uma palavra, uma orientação, uma explicação antes que a aula se encerrasse.

Quando acordei entendi que esse é o sonho dessa quarentena, a sensação de fracasso por não conseguir cumprir um acordo estabelecido lá no começo, o medo de não manter o compromisso.

Essa noite sonhei que estava dando aula, comecei a fazer a chamada e não conseguia avançar porque as estudantes me interrompiam o tempo todo, com suas conversas, piadas, perguntas, risadas. Acordada, pensei que esse sonho fala daquilo que eu tenho saudade. Compartilhar não apenas as ideias, os textos, as tarefas, o “conteúdo”, mas as risadas, as piadas, aquela inquietação e dificuldade de permanecer quieta, sentada, aquele olhar de cumplicidade ou de incômodo, o sono... afinal essas são manifestações da vida, e não existe conhecimento sem vida. A gente faz educação juntes, a partir do encontro, dos atritos, da convivência... é assim que a vida se faz em nós também.

Tem sido um desafio e tanto fazer educação não presencial, o paradigma é outro e a convivência quase não existe... embora estejamos compartilhando muitas das dificuldades e das dores dessa condição. Há pequenas alegrias também, como eu imagino que pra alguns possa ser o conforto de “ter aula” na cama, de pijama... um pesadelo recorrente agora tão real.

14 de jul. de 2020

mergulho







Não há imunidade
consideramos números e dados
contemplamos o horizonte do tempo
a partir de nossas janelas
os dias são solares
o outono traz seu frio com amizade suave
os poucos ruídos da rua
convidam e repelem
a indesejada das gentes
brinca
ameaça tocar a campainha
a qualquer momento
baixar a curva
é o mantra social
escapar do invisível e do inominável

mergulho fundo no infinito particular
e muitas vezes desconfio que não haverá saída
que não haverá tempo ou desejo
abandonar esse mundo outra vez
e o delírio do convívio
com a outra a outra a outra a outra de mim
não é o mesmo
de quem tem fome frio falta

nada está sob controle
já dissemos tantas vezes
e agora essa frase ecoa na minha barriga
antes de dormir depois do despertar
sonho com viagens estradas aviões encontros
e vivo dormindo o que não é possível realizar
acordada
ironia do destino
você me chamando
amor acorda
aqui estamos
acorda
a lua cheia nasce do oceano outra vez
sussurra um acalanto
há mares de amplidões inexploradas
nuances na teia da vida
é preciso escutar o som que faz
o ar entrando e saindo dos pulmões
a onda que avança e recua
a dança atemporal
da plenitude e do vazio
silêncio, amor


eh

entrelaçadas




A cantiga da amiga me desperta
e me convida a ensaiar
de novo olhar aquela miragem
sempre outra
tantas e tantas vidas depois

Ouço a música
enquanto penso que todos os meus poemas
são de amor
mesmo o da revolta
não sei se é porque com eles se escreve
a sensação de exposição íntima
do peito que se rasga
da carne à mostra
ou pelas palavras
imagens
que visitam e povoam
os olhos, as palavras, as dores, os movimentos
de um corpo outro
teu

Na escrita há desejo
a relação com as teclas ou a caneta
o ímpeto de expurgar, devorar, desnudar, deixar à mostra
e depois ocultar
endereçar palavras e gestos
sutis
dizer como quem descuidadamente
entrega algo mais
e envolve na trama
delicada, vulgar
contemplo distante
ou apenas suspeito
teu olhar a se mover da esquerda pra direita
de cima para baixo
curioso, voraz
o coração ofegante
intrigado
uma pergunta persegue
- o que quer dizer?
letra lasciva luxúria
ela
quer
esse fogo crepita e estala
você fecha o livro num golpe
o sopro forte alimenta a chama

eh


sonhada sonhante





"De baixo do lençol que te tateia pele fina"
Lula Queiroga
Você me pergunta sobre o sonho
eu não consigo evitar
pensar no inseto que acorda
ou na mulher que desperta no corpo de um inseto
imagino as patinhas finas e curtas se agitando no ar
na mesma velocidade dos pensamentos buscando explicação

um pesadelo
a borboleta e tchaung-tse
sonhada sonhante
as camadas indo vindo
se eu caminho desperto?
escrevo desperta?

buscamos respostas
meu coração bate
o ar entra e sai dos pulmões
agora
um corpo de verdade
dança
fala
chora
cala
escreve
e aí o buraco é mais embaixo

um caminho sonhado
a estrada escura a solidão
o horizonte amplo grande infinito
o desejo me move na direção de tudo que não vejo

o dia inteiro assombrada pelos encontros noturnos
tento desvendar essas visitas
quem eu não sou sempre me chega
mais hora menos hora
pra você também
fechados ou abertos os olhos
esse vazio te encontra?

Eu de mãos dadas com a menina
cinco ou sete anos
um número ímpar
sinto seus dedinhos pequenos e macios abraçando minha mão

Sonhei que escrevia um poema
sem usar as mãos
sem mover muito o corpo
as imagens difusas
se imprimiam na minha pele
pelo lado de dentro
um texto que se toca ao fechar os olhos
uma partitura
sonho ou pesadelo
as ambiguidades dessa relação
a escrita no corpo-mundo
sem forma
então adio, atraso, esqueço e me distraio
começo e não termino
ambiciono projetos
um conjunto de versos acertados
começo, meio e fim
desisto no primeiro lance

A analista me diz
as coisas não precisam acabar
eu ouço que devo
enfrentar meu medo do ridículo
aquele sonho recorrente
chegar na escola de pijamas
de pantufas
a boca sem os dentes
estar seminua no trabalho
é parir no mundo essa cria inacabada
e acreditar que ela pode chegar
a dar alguns passos por si mesma,
a trilhar caminhos imprevistos

O informe
letras trêmulas em linhas tortas
escorrem das minhas mãos
procuro me concentrar no desenho
que formam e esquecer
um pouco do tanto que ocultam

Eu menina
no meio da noite uma imagem no espelho
diante da minha cama
uma mulher
a estranha mais familiar
sua indiferença me amedronta
eu acordo e a imagem continua ali
um espelho móvel
benção ou maldição
a superfície me devolve
sempre ela, ela, ela, ela
em tantas faces
parece indicar a minha ausência
eu pura sombra e reflexo
apenas sonhada
aprisionada do lado de lá
não adianta ser linda, meiga, divertida
o olhar dela não se move
fixo no chão um ponto impreciso
ela parece existir sem meu choro
sem minha fome
sem minha força de crescer crescer crescer

Enfrentar a noite escura
com as sombras que a luz da rua projeta na minha parede infantil
sobreviver aos ruídos da ameaça que se aproxima
e se instala sorrateira debaixo da cama
dentro do guarda roupa
só pra me sentir mais livre, segura e forte ao despertar
um dia novo outra vez

eh 

Afetação



Refundar a existência parece ser o trabalho agora
outras referências
o paideuma dos meus afetos
fêmeas

Estar de volta
o calor e o silêncio acalmando o peito
quase tudo está bem
eu agradeço
enquanto penso em arrancar os pelos
a expressão da nossa loucura rotineira
chegar e partir
aqui jogo minha âncora
ela desce até as profundezas
e promete
segurança na flutuação
Barco? Iceberg? Prancha? Canoa?
O apito do navio anunciando

é preciso ampliar o tamanho das letras para ver palavras grandes
e tentar enxergar o que tem dentro delas
caminhos inusitados
insólitos enredos
e o que tem dentro do coração?
sístole, diástole
teu nome teu olhar e a memória da dor

Vermelho é o traje das que tem o honrado destino
conceber e parir as crias
que não serão suas
mas deles
bendita seja a fruta
quando olho para a cor desse lenço
lembro do que podemos nos tornar
e que os significados construídos
estão sempre ameaçados
são os horrores da sua imaginação, há quem diga

o fio vermelho escorre e anuncia
prepare-se para a dor
ela chega e eu sinto culpa
comi bebi corri e aloprei demais
mas o nome disso talvez seja vida
líquida
ela pulsa em caminhos
bifurcações raízes ambiguidades
e eu ainda não escolhi virar monja
o sabor do risco
transbordar o copo
santo graal
cabernet carmenére malbec shiraz
com toda devoção
o vermelho da vida
entra e sai do coração
pela boca
tem gosto de sangue
tem gosto de amor
náufraga

e quando o dia se finda
o sol tinge o horizonte
rubro lavanda ouro
as nuances do ciclo
extravagância
amanhã tem mais
eu exagero mesmo
é isso que o vermelho me diz
que tem muito e ainda mais
para as que sabem tocar
o gosto de ferro
o cheiro de carne
a morte e a vida
na semente
maçã
você me diz de suculências, apetites, afetos e venenos
enquanto o trabalho ocupa e consome
meus (res)sentimentos agravados com o vento

Na caverna pude ver e ouvir
os veios da terra, o som que faz
plic plic plic plic
amplificado e contínuo por eras
úmida, escura, escorregadia
acolhe a humana presença assustada
meus olhos pingam
estalactite
plic plic plic plic
dedos inquietos e ardentes
marcam aqui o tempo de uma passagem
breve
longa
na alternância da duração
partitura
o corpo canto a terra dança


eh

revoltografia



(Imagem: Blekotraka)

A partir da pergunta da Ibriela

I
as perguntas recebidas são dádivas
ou maldições
como aqueles insetos, zumbindo no ouvido
e dessa vez precisava mesmo alguém enunciar aquilo que mal conseguíamos

a volta é encarar o espelho outra vez
e de novo
velha eu
velho o desejo de quebrar o espelho
essa é minha revolta
extraviar a imagem como quem nega a fixidez
da superfície plana
não ser isso
mais
dividida e compartilhada
uma parte de mim em cada caco
multidão irreconciliável
(já falamos disso aqui)
todos os espelhos da minha casa
micropartículas espalhadas
eus multidão

a revolta dói do estômago
a cada notícia falsa faca punhal adaga
os cortes são muitos
mas não impedem o combate


II
permanecer boquiaberta diante do impensável de todo dia
não as sutis e imprevisíveis riquezas
mas as vilanias de quem exerce o poder
ah conheço vocês pelo cheiro, diz o poeta

a revolta é isso que se contrai em cada membro
do corpo e faz das vísceras minhas inimigas

penso nos pedaços de louça que se garimpa nas cidades fantasmas
nas camadas profundas da terra que engoliu o tempo
resquícios
a vida fértil, proliferante, que já não há mais
só penso em pedaços e fragmentos
a revolta de algum jeito me isola?
porque não consigo, com ela, me unir a vocês?
Então escrevo, penso se essas letras de palavras conhecidas, até previsíveis e banais, poderiam ser esses caquinhos, essas partículas, esse resto... e que talvez assim a revolta fale de sua potência
o contato precário e imprevisto da escrita com a leitura
nossa vida inteira jogada em alguns lances
a mão aberta no teclado estende e alcança
a mão fechada e o punho em riste acompanha gritos e tambores
não estamos sós
e isso já não é mais sobre nós
é sobre o que virá
nossa capacidade de sonhar e resistir
porque revolta há


III
revolta é quando eu vejo o mofo fazendo desenho nas paredes
cicatrizes de um longo inverno úmido na ilha
ao sul
e depois fungos e mínimos insetos surgem e devoram um bom tanto do mofo
rasurando parte dos desenhos

ou revolta é quando a gota de kiboa cai na toalha
fazendo um desenho indelével

ou quando uma fibra de fruta ou carne se aloja no espaço entre os dentes
e eu não consigo tirar
com os contorcionismos da língua
nem com o canto da unha

mas nada disso é ainda a revolta
desastres do cotidiano
grafia dos dias
e a maior inaptidão ao desenho

o incêndio no museu
as deformas
a extinção dos ministérios
o projeto de derrocada devastação
a ameaça constante
a censura auto-imposta
a terra arrasada que eles desenham
no nosso corpo
isso sim revolta
enquanto penso em comida, escrevo poema, cuido do gato, corrijo textos
como se atravessam esses dois planos na minha carne que não é a mais barata do mercado, eu sei, a minha existência classe média hétero cis branca envergonhada
não quero aplauso nem confete
mas construir algo desse lugar inevitável
minha história é só mais uma
o que eu tenho pra contar

e eu interrompo tudo
a escrita do poema pra espiar na janela do inferno
escada abaixo é isso
o tombo no abismo
mas eu já sabia sim
só não sabia que quem se levanta é outra pessoa
mulher que anda lento e engraçado
não acho o fio da meada
o passo da dança descompassada
mas de algum modo presente
vagarosa e nítida
assumo quem estou

IV
a revolta me escapa
tento recuperar aquela sensação
a carne em frangalhos
e xícaras e talvez também pratos jogados com força contra aquele muro

meu amigo falaria que isso é autoficção? Autofricção?
massagem no ego e outras perversidades sórdidas talvez
um caminho para os holofotes
queimados de um inferninho qualquer

tem quem diga que lugar de poema é no banheiro
provavelmente também esteja certo
na vida privada
e outra vez
a revolta me escapa

penso em formar grupo, coletivo, casa, casal, cartel
qualquer coisa de força compartilhada
ler e discutir os textos a vida inteira já me moveu por aí
contatos e contágios
o afeto do meu peito juvenil
enquanto roubo as palavras na sequência
fica feio
ou fica bom?
lembra nome de picolé

o gelado me revolta
palavras gélidas, silêncios perversos de quem trama
parece que não era pra ser assim o texto
tão cru, tão literal, tão besta


V
é preciso também quebrar as telas
não cultivar likes
não fornecer dados
embaralhar o perfil
a construção da identidade aqui foi algo que aprendemos com o tempo de uso dos dispositivos
ninguém sabia tirar selfie tão bem no começo
era uma arte construir um bom perfil, as imagens exuberantes correspondendo exatamente à ideia que queremos dar do que somos, sentimos, pensamos
aquela luz, aquela roupa, o batom, mas principalmente o ângulo certo
e agora queremos desconstruir padrões e embaralhar o algoritmo
o que as pessoas andam dizendo me define porque sou a favor ou sou contra
ou sou indiferente também

existam aí bem distantes do meu quadrado retângulo santa tela de jesus maria
eu espio meus inimigos porque ser contra me define
mas cansa jogar esse combate inócuo
a revolta encenada é paralisante
já nos levou às ruas também
corpo a corpo
olho no olho
e o sol na cabeça
andamos juntas, eu sei e isso me conforta
tua companhia na revolta me sinaliza o caminho

abandono os pudores pouco a pouco
conforme sobe a barra da camisa
te
quero
aqui
sim

e todas as meses a gente cultiva
um corpo lúteo
só não quando está prenha
falamos em cacos
em metas-segredo a serem cumpridas
aos 35, esse número esquisito
mas falamos também no descaso público
e todas essas coisas se misturam
no meu corpo
na nossa conversa
são coisas urgentes
a possibilidade de pensar a vida
de viver a vida
de gozar a vida
e de questionar essa vida quadrada dos homens de bem
o etnocídio nosso de cada dia
me revolta

VI
salgar o pensamento é técnica
não resfria a cabeça
talvez os pés
amacia os ligamentos que precisam se reconstruir
converso com todas as células dizendo “ei, eu acredito em vocês”
e mando cartas com meu coração inteiro dentro
escancaro o peito
escancaro os dentes
sem tirar a blusa, dessa vez
e você sabe que assim é bem mais sério

as coisas ficam sérias
eu me lembro da jornalista que foi atingida no olho
e daquele que foi atingido por um rojão
preciso relembrar essa história, pesquisar
foi quando eles mudaram a narrativa
foi bem quando eles cooptaram a potência informe daquilo que era muitas coisas
pra fazer delas muitas uma única coisa só
um erro

a gente não sabia para onde estava indo
mas a gente, alguns de nós, já sabíamos onde queríamos chegar
dizer não foi importante
mas roubaram nossas palavras
com patos e panelas
eu ainda quero livre passe

uma das mulheres presas e perseguidas tinha o meu nome
terrorista, acusaram
é bom saber a quem odiar, demonizar, denunciar, caluniar, violentar, descartar
eu li uma entrevista depois e ela disse que tinha crises de pânico

quando a gente escreve demais tipo vômito depois não sabe por onde começar a limpar a sujeira
mas vem tudo como num jorro
das entranhas
isso é revolta
revoluções excretam o imprestável
o intragável
pelo cheiro e pelo seu amor ao dinheiro
fora de mim fica melhor
esse asco eu revolto
a revolta é uma devolução
penso nisso de volver e revolver a terra
fazer do lixo adubo para a vida
semear e ver germinar
e depois comer o que a terra dá

e penso nas linhas do arado
nos sulcos da terra
e nas linhas e vincos que surgem no meu corpo
a sobrancelha crispada, o cenho cerrado
isso é a revolta
o tempo que passa e marca
não há imunidade
a carne que armazena as memórias da dor e da violência
se nutre no amor que ainda há
e volta
isso sim
um cultivo dedicado
minucioso
é tudo o que nos resta aprender
cultivar o alimento
esperar
saber a hora de colher
celebrar o preparo e a nutrição


eh