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19 de dez. de 2020

nós ao avesso

 


No percurso, te incomodava saber que aquilo que os professores se esforçaram para falar durante a aula já se esvaía na mente dos alunos. E ali, naquele ônibus, olhando para todos eles, você percebia que esta fora sua luta cotidiana, talvez a única que valesse a pena: fazer a sua voz permanecer na cabeça deles o máximo de tempo possível. Entretanto, você tivera a impressão de nunca haver conseguido influenciar ninguém. Você estava com cinquenta e dois anos e tudo que você tinha nas mãos eram os livros, algumas provas e uma vontade doida de beber algo. Você desceu próximo a um boteco que costumava frequentar. Pediu uma cerveja. Em seguida pensou em Elisa. E pensar nela o fazia não prestar atenção no sabor da bebida. Você pensava em Elisa e bebia. Entrava numa espécie de roda-viva. O sabor amargo e a falta de Elisa. Outra cerveja. Em pouco tempo você estava bêbado. Na embriaguez parecia lidar melhor com a perda. A dor é amortecida. Era o que te ajudava a voltar para casa. Alto e flutuante. E depois só tinha tempo para tirar os sapatos antes de deitar na cama. Acordou de ressaca com seu despertador gritando. Estava frio e chuviscava. Ressaca, frio e chuva: a fórmula perfeita para ligar para a escola e mentir que estava doente. Mas não. Você levantou, porque não gostava de faltar. No caminho para a escola sentiu uma espécie de raiva de si mesmo por voltar ao abismo: a falta de Elisa. Mas era assim mesmo. Você já deveria ter aprendido. Quantas decepções afetivas você já tinha passado na vida, você se confortava. Resignou-se e tentou compreender o fim novamente. Regressou ao passado. Analisava as minúcias do relacionamento; as discussões, os silêncios e as mágoas. Não amei certo, você pensava, e se punia. Mas a vida segue porque, mesmo quando se ama errado, ainda temos de viver. O amor não impedia a vida. Continua-se porque os carros não param, homens e mulheres se levantam e  vão trabalhar. Todos os dias. Segue-se, não por bravura ou altivez, mas porque simplesmente não há o que fazer. E não há aí nenhum ensinamento ou lição a aprender. A não ser domar a tristeza e aceitar conviver com ela, você pensava. E, mesmo que Elisa continuasse a vir a seus pensamentos, e nos momentos mais impróprios, você lutava contra eles. Para isso, você precisava concentrar forças nas suas aulas. E talvez essa fosse a sua última lição antes de deixar o magistério: não mais influenciar seus alunos, mas se deixar influenciar por eles. Contagiar-se da ingenuidade deles e perceber com espanto as coisas novamente pela primeira vez. E nas aulas, talvez, superar a rua em que você e Elisa caminhavam, a padaria em que tomavam café, o caixa eletrônico em que pegavam dinheiro, o parque no inverno. Tudo ainda ali dentro de você, ainda cambaleando, você tentando superar numa sala com adolescentes desajustados as sobras de um afeto. Você que um dia pensou que aos cinquenta e dois anos saberia lidar com o fim das coisas. Mas a dor não escolhe idade quando quer doer, você pensava. Na parada, enquanto esperava o ônibus, teve vontade de chorar. Mas você se tornou um homem antigo. E homens antigos não choram em paradas de ônibus. Não por macheza ou para provar sua virilidade, mas porque não fica bem um homem antigo chorar em público, você pensava. Depois da escola, na volta pra casa, mantinha a cabeça baixa, mas ainda assim não chorava. [...] Você sabia que não havia sido um grande professor. Você apenas travou durante anos uma guerra particular, mas cumpriu a tarefa. Não abandonou o barco. E achava que isso já te redimia das aulas ruins que deu. Certa noite você baixou o volume do som, pegou o telefone pensando em ligar para Elisa, mas hesitou. Sempre hesitava. Mas até quando?

Jeferson Tenório, O avesso da pele, p.156-158

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