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30 de nov. de 2015

sobre habitar, um desejo

A mulher e a casa

Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância
esse teu reboco claro
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só pra ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é de dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser de dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizam-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.



João Cabral de Melo Neto, em Quaderna

2 de nov. de 2015

os trabalhos e os dias OU sobre quando e como fal(h)amos

6.

É tarde da noite e o telefone toca; adormecer não era parte dos planos e sim mais uma consequência do cansaço. Viver exige estar preparado. O corpo acordaria sem reconhecer o ambiente ao redor. Tanto faz. A paralisia dos sentidos já fora iniciada. Do outro lado da linha, alguém que talvez se importasse. Alguém que estivesse indo dormir querendo dizer apenas tenha uma boa noite. Ou talvez somente conversar um pouco. Apenas tentar compreender o que faz com que a vida exija tanta manutenção. E parece que não sobra lugar algum para uma alegria real. Fugir de agendas inventadas. Clandestinamente chegar até aquele bar numa esquina. Pedir o quê? Tanto faz. Mas é que a tarde estava o que se pode chamar de especial. Mas é que do lado de fora da porta de vidro havia um casal que explicitava um estado nascente de paixão. Enquanto outros dois vivenciavam o fim. Há tanto tempo juntos; nem mais se conheciam. Era preciso que fossem mais uma vez apresentados um ao outro. Para novamente se surpreender. O constrangimento a dois é vergonhoso: redundâncias do amor que se esvai. Flagrar com desgosto a alegria do casal. O pior uso da intimidade, esse de evitar os movimentos difíceis. Se a emoção viesse. Ah, tanto faz! Virar o rosto para dizer que não acreditam mais. E tacitamente se considerarem um fracasso público. A carteira com dinheiro não é mais garantia de segurança íntima. A comida está boa? Era isso mesmo que vocês queriam? Por que de uma hora para outra o mundo estava em desconserto? Onde aquela cor havia se esmaecido? E o modo de o corpo reagir sem resposta. O funcionamento lógico do mundo. Do dia para a noite. Ah, tanto faz. Segurar o copo. Levá-lo à boca. Encostar o cristal nos lábios. Ingerir o líquido. Abraçar com vontade o corpo do outro. Procurar o mistério vivo dentro dos olhos. Beijar e deixar-se beijar. Tanto faz. Nenhum está mais ali. Dormir. Acordar. Viver. O tabuleiro largado no meio da partida. Aonde estariam indo enquanto mantinham-se parados?



7.

Talvez não se devesse falar de amor. Talvez fosse melhor simplesmente lembrar a noite em que, antes de partir, viu aqueles olhos pela última vez. Talvez, deixar de lado as palavras difíceis. Estas os encerrariam em infinitos corredores. As palavras descontadas. E o silêncio do olhar. Acordes de uma canção. Nenhum motivo para velar o corpo insone das horas. A música chegando ao mar, orquestrando a repetição das ondas. Oração sonora. Riso solto misturado aos dias abertos de sol. Traço de lua em um rosto noturno e denso. Talvez não devessem se acostumar a mentiras. Talvez tenham chorado demais. Talvez se devesse, sim, falar de amor. Dançar molemente no ritmo. Dentro do ritmo. Entregues ao ritmo. Oferecer aos olhos outras paisagens. Outros cenários com que o amor escapasse às ciladas do tédio. Do que é feito um corpo, soube. Do que é feito um corpo, quis. Do que lhes foi dado sentir, desperdiçaram os mais puros dons. Sem escolher as difíceis palavras. E o dia tardava sempre a amanhecer.




Assionara Souza, Os hábitos e os monges, p.29-31

19 de out. de 2015

o tédio e os primeiros passos

Ela estava mais leve. Nunca imaginara uma coisa dessas. Ia andando pelas ruas, ao sair da faculdade de direito, e todo mundo reclamava, fazia calor, chovia, sucediam-se os engarrafamentos, as calçadas estavam cheias de gente, as aulas eram chatas, o professor de direito público gaguejava com sua entonação arrastada, suas piadas infames, seu jeito de inclinar a cabeça lendo em voz monocórdica suas notas, um tédio que flutuava como um bafo forte no ar... E ela, Ujine, tinha vontade de correr, de dançar. “Que foi que te deu? Você parece ótima!” A amiga Micha a olhava com expressão sarcástica. Não era mesmo um pouco ridículo? E tudo por causa de um rapaz que ela só conhecia de seis meses pra cá, que entrara em sua vida sem que ela nem percebesse, causando tanta mudança. Enfim se acabara o tédio, a tristeza? Ela tentava raciocinar. “Não, não era nada demais, apenas o prazer de existir. – Mas era grande a novidade, algo inédito! Agora então já não se morre, não se fica mais doente, tudo vai bem no mundo? – Um momento de abandono, digamos, um interregno, uma brusca alteração do seu estado de espírito. – Um prazer egoísta, né? – É, se assim lhe parece; é preciso ser pateta pra não ser egoísta.”
Impossível raciocinar a respeito. Tornado elástico, o próprio chão se levantava, milhões de molinhas, milhões de bolhas, as articulações quentes, a corrente elétrica que atravessava seu corpo, que passava por suas pernas, pelos braços, e ao andar ela ia abrindo e fechando as falanges para melhor sentir a sua liberdade, sorria para as pessoas que a tomavam por louca.
Ela se espantava. Então o amor era isso? Uma espécie de auréola sobre sua cabeça, uma espécie de carapaça invisível, sentia-se muito abrigada, no âmago, ela se sentia invencível. Um fluido, ela dançava.
Aos encontros, ia sem segunda intenção. Samuel não queria nada de sério, nada de definitivo. Dizia apenas: “Então eu te ligo, tá?”. Mas nunca lhe dera o seu telefone. Dizia que não tinha celular, tinha somente um número no trabalho, no banco, e ligar pra lá, nem pensar. Vai ver que ele se escondia por trás desse trabalho, por trás dos pais. Tinha falado um pouco a Ujine sobre a mãe, uma mulher frágil, que não contava senão com ele, depois da doença do pai. Moravam todos no mesmo andar do mesmo prédio. E a mãe, quando ele custava muito a voltar à noite, ligava para os hospitais, a polícia. Era meio absurdo, sendo um rapaz de trinta e cinco anos, mas Ujine ao mesmo tempo tinha ficado comovida com aquele amor filial. Não tinha ninguém, morta a mãe, o pai no fim do mundo, o irmão longe, desligado dela. Talvez por isso se sentisse tão livre, tão leve. O amor era um vento violento e Ujine tinha plena liberdade para soar como uma harpa de relva, rodar como um moinho, sentir aquele movimento que fora disparado em seu próprio centro, uma vertigem no oco do estômago, um eixo que vibrava girando. Por isso, sob seus passos, o chão era elástico, sonoro, liso, sem nenhuma ruga, nenhum vazio.
       Agora, na rua, as pessoas olhavam para ela. No trabalho, na faculdade, nas lojas, sentia como atraía os olhares. Ia querer saber se havia algo errado, escondendo-se por trás dos cabelos, baixando a aba do boné sobre o rosto. Agora porém corria para os encontros com Samuel, ou simplesmente pensava muito nele, e os olhares alheios deslizavam, vindo na sua direção. Sentia-se protegida por uma aura, no interior de um halo de luz. Via o semblante do amado, o brilho dos seus olhos castanhos, a linha das sobrancelhas, a do nariz, o debrum perfeito dos seus lábios.


J. M. G. Le Clézio, História do pé, p.20-21.

9 de out. de 2015

escritos de bordejar

Quero ser a água doce de um riacho. Quero rolar no barranco, esbarrar pedrinha. Quero receber o viajante cansado e lhe dar de beber. Quando fui pássaro, noutra vida, o que mais gostava era de observar os homens. Nessa vida sou mulher e já não posso voar. Tenho uma penugem bem fina no ombro que, aquecida ao sol, volta a ter cheiro de penugem de nuca de pássaro. É uma coisa linda! Quando sinto esse cheiro fecho os olhos e parece que estou voando de novo.

Se eu fosse outra. Ah, se fosse aquela. Um pouco mais branca. Um pouco mais preta. Se eu fosse apenas eu. Quando sou tantas, nenhuma, várias. Sendo apenas nada, apenas tudo, coisa nenhuma. Sendo carne e osso. Sendo pensamento. Pássaro solto. Quando sou o que querem que seja, aí tenho medo. Sou turista, estrangeira, burguesa. Sou uma índia que cresceu nas margens do rio Itajaí-açu. Tenho um pássaro que levo comigo e que me serve como transporte de alma. Já vi curupira na taquara com cachimbo de caracol. Sou a filha do motorista, ex-mulher do baterista. Sou uma falta de lugar. Sou espaço torto. Sou rio que desapareceu.

[…] 

Tento tecer o texto feito de margem estreita, fina, e de muita vontade de falar cantado, de ser poesia. Sei que o risco beira o patético e que o dito tem ares de documento. Queria antes deixá-lo na margem, para que acompanhasse o fluxo dos rios e se tornasse sempre diverso noutro lugar. É a margem que busco naquele espaço livre dos livros de ciência, aquele quadrado que vira desenho nas aulas intermináveis, aquele espaço onde o pensamento ganha som pra conversar com as palavras tantas, dos tantos livros que precisamos ler. Aquela mesma margem que me acolheu em muitas tardes cabuladas, no subir e descer as pedras do rio. A margem que renascia a cada volume de água, lodosa e contingente de objetos diversos trazidos pela cheia. O que ficara escondido pela água agora desvelado, a salvo do rio.

[…]

Tenho também vontade de ficar inerte. Parada e silenciosa como uma árvore. Com sua grave sabedoria no viver. Pensar e pensar e pensar parece doença. E agora até mesmo a doença é uma invenção! Odeio ter de me inventar. O corpo que saiba, oras! Pensamentos confusos. O que farei com tantos pensamentos? O que quer que seja, um vento soprando de leve. A estação mudando comigo, a casca caindo e deixando pele nova. 

margem de Graciela Krucinscki

18 de ago. de 2015

isso que nos atravessa, o outro

           O vitral

           Desde muito, ela sabia que o aniversário, este ano, seria num domingo. Mas só quando faltavam quatro ou seis semanas, começara a ver na coincidência uma promessa de alegrias incomuns e convidara o esposo a tirarem um retrato. Acreditava que este haveria de apreender seu júbilo, do mesmo modo que o da Primeira Comunhão retivera para sempre os cânticos. 
         - Ora... Temos tantos... - respondera o homem. Se tivéssemos filhos... Aí, bem. Mas nós dois! Para que retratos? Dois velhos!
         A mão esquerda, erguida, com o indicador e o médio afastados, parecia fazer da solidão uma coisa tangível - e ela se reconhecera com tristeza no dedo menor, mais fino e recurvo. Prendera grampos aos cabelos negros, lisos, partidos ao meio, e levantara-se. 
        -        Está bem. Você não quer... 
         (A voz nasalada, contida, era um velho sinal de desgosto.) 
       - Suas tolices, Matilde... Quando é isso? 
       Como se a ideia a envergonhasse, ela inclinara a cabeça: 
       - Em setembro - dissera. No dia vinte e quatro. Cai num domingo e eu... 
       - Ah! Uma comemoração - interrompera o esposo. Vinte anos de casamento... Um retrato ameno e primaveril. Como nós. 
        Na véspera do aniversário, ao deitar-se, ela ainda lembrara essas palavras; mas purificara-se da ironia e a repetira em segredo, sentindo-se reconduzida ao estado de espírito que lhe advinha na infância, em noites semelhantes: um oscilar entre a espera de alegrias e o receio de não as obter. 
         Agora, ali estava o domingo, claro e tépido, mas não com as alegrias sonhadas sonhadas, sem o que tudo mais se tornara inexpressivo. 
        - Se você não quiser, eu não faço questão do retrato - disse ela. Foi tolice. 
        - O fotógrafo já deve estar esperando. Por que não muda o penteado? Ainda há tempo. 
        - Não. Vou assim mesmo. 
        Abriu a porta, saíram. Flutuavam nas raras nuvens brancas, as folhas das aglaias tinham um brilho seco. Ela deu o braço ao marido e sentiu, com espanto, uma anunciação de alegrias no ar, como se algo em seu íntimo aguardasse aquele gesto. 
        Seguiram. Soprou um vento brusco, uma janela se abriu, o sol flamejou nos vidros. Uma voz forte de mulher principiou a cantar, extinguiu-se, a música de um acordeão despontou indecisa, cresceu. E quando o sino da Matriz começou a vibrar, com uma paz inabalável e sóbria, ela verificou, exultante, que o retrato não ficaria vazio: a insubstancial riqueza daqueles minutos o animaria para sempre. 
       - Manhã linda! - murmurou. Hoje eu queria ser menina. 
       - Você é. 
       A afirmativa podia ser uma censura, mas foi como um descobrimento que Matilde a aceitou. Seu coração bateu forte, ela sentiu-se capaz de rir muito, de extensas caminhadas, e lamentou que o marido, circunspecto, mudo, estivesse alheio à sua exultação. Guardaria, assim, através dos anos, uma alegria solitária, da qual Antônio para sempre estaria ausente. 
       Mas quem poderia assegurar, refletiu, que ele era, não um participante de seu júbilo, mas a causa mesmo de tudo que naquele instante sentia; e que, sem ele, o mundo e suas belezas não teriam sentido? 
         Essas perguntas tinham o peso de afirmativas e ela exclamou que se sentia feliz. 
        - Aproveite - aconselhou ele. Isso passa. 
       - Passa. Mas qualquer coisa disto ficará no retrato. Eu sei. 
         As duas sombras, juntas, resvalavam no muro e na calçada, sobre a qual ressoavam seus passos. 
       - Não é possível guardar a mínima alegria - disse ele. Em coisa alguma. Nenhum vitral retém a claridade. 
       Cinco meninas apareceram na esquina, os vestidos de cambraia parecendo-lhes comunicar sua leveza, ruidosas, perseguindo-se, entregues à rua, abriram um portão, desapareceram. 
       Ela apertou o braço do marido e sorriu, a sentir que um júbilo quase angustioso jorrava de seu íntimo. Compreendera que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. "Que este momento me possua, me ilumine e desapareça - pensava. Eu o vivi. Eu o estou vivendo". 
        Sentia que a luz do sol a trespassava, como um vitral. 



Osman Lins, em Os gestos