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9 de out. de 2015

escritos de bordejar

Quero ser a água doce de um riacho. Quero rolar no barranco, esbarrar pedrinha. Quero receber o viajante cansado e lhe dar de beber. Quando fui pássaro, noutra vida, o que mais gostava era de observar os homens. Nessa vida sou mulher e já não posso voar. Tenho uma penugem bem fina no ombro que, aquecida ao sol, volta a ter cheiro de penugem de nuca de pássaro. É uma coisa linda! Quando sinto esse cheiro fecho os olhos e parece que estou voando de novo.

Se eu fosse outra. Ah, se fosse aquela. Um pouco mais branca. Um pouco mais preta. Se eu fosse apenas eu. Quando sou tantas, nenhuma, várias. Sendo apenas nada, apenas tudo, coisa nenhuma. Sendo carne e osso. Sendo pensamento. Pássaro solto. Quando sou o que querem que seja, aí tenho medo. Sou turista, estrangeira, burguesa. Sou uma índia que cresceu nas margens do rio Itajaí-açu. Tenho um pássaro que levo comigo e que me serve como transporte de alma. Já vi curupira na taquara com cachimbo de caracol. Sou a filha do motorista, ex-mulher do baterista. Sou uma falta de lugar. Sou espaço torto. Sou rio que desapareceu.

[…] 

Tento tecer o texto feito de margem estreita, fina, e de muita vontade de falar cantado, de ser poesia. Sei que o risco beira o patético e que o dito tem ares de documento. Queria antes deixá-lo na margem, para que acompanhasse o fluxo dos rios e se tornasse sempre diverso noutro lugar. É a margem que busco naquele espaço livre dos livros de ciência, aquele quadrado que vira desenho nas aulas intermináveis, aquele espaço onde o pensamento ganha som pra conversar com as palavras tantas, dos tantos livros que precisamos ler. Aquela mesma margem que me acolheu em muitas tardes cabuladas, no subir e descer as pedras do rio. A margem que renascia a cada volume de água, lodosa e contingente de objetos diversos trazidos pela cheia. O que ficara escondido pela água agora desvelado, a salvo do rio.

[…]

Tenho também vontade de ficar inerte. Parada e silenciosa como uma árvore. Com sua grave sabedoria no viver. Pensar e pensar e pensar parece doença. E agora até mesmo a doença é uma invenção! Odeio ter de me inventar. O corpo que saiba, oras! Pensamentos confusos. O que farei com tantos pensamentos? O que quer que seja, um vento soprando de leve. A estação mudando comigo, a casca caindo e deixando pele nova. 

margem de Graciela Krucinscki

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