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30 de out. de 2020

isto e aquilo, um corpo, uma vida

Pablo Picasso,  Garota diante do espelho

        Uma mulher de certa idade parada diante do espelho, nua, examinando esta ou aquela parte do corpo. Não faz isso há… vinte anos? Trinta? O ombro esquerdo, que ela projeta para a frente, para ver melhor – nada mau. Sempre teve bons ombros. E boas costas, comparadas – há muito tempo, claro – com as da Vênus de Rokeby. (Existem, talvez, muito poucas mulheres das classes educadas cujas costas não tenham sido comparadas, por amantes cegos de amor, com as da Vênus de Rokeby.) Mas era difícil enxergar as costas: o espelho não era grande. Os seios? Muitas jovens estariam contentes com eles. Mas espere... o que tinha acontecido com eles? Uma mulher pode ter seios como os de Afrodite (afinal pelo menos uma mulher deve ter tido), e a última coisa em que alguém vai pensar, olhando para eles, é em nutrição, mas eles se transformam em confortáveis tetas, e a dona deles pensa: para quê? Para acomodar a cabeça dos netos? Sem dúvida a época certa para aquelas tetas tinha sido quando fora mãe. (O que a Natureza estava aprontando?) Pernas. Bom, não estavam mal agora, mas melhor não pensar no que eram. Na verdade, havia tido um bom corpo, e ele mantinha sua forma (mais ou menos) até ela se movimentar. Então ocorria uma sutil desintegração, e certas áreas, apesar das boas formas, cobriam-se de finas rugas veludosas como um pêssego passado do ponto. Mas tudo isso era irrelevante. O que ela não conseguia encarar (mas que tinha de se forçar a enfrentar) era que qualquer moça, por menos favorecida que fosse, tinha uma coisa que ela não tinha. Jamais teria de novo. Era irrevogável. Não havia nada a fazer. Tinha vivido seu trajeto até esse ponto, e dizer “Bom, todo mundo vive”, não ajudava nada. Tinha vivido seu trajeto cheia de filosofia, como as pessoas acham que deve ser, e depois a carga de profundidade, e ela era como uma daquelas paisagens em que movimentos subterrâneos trazem à superfície uma dúzia de estratos, criados em épocas inteiramente diferentes e até então separados, revelando montanhas feitas de rochas vermelhas, verde-oliva, turquesa, limão, rosa e azul-escuro, todas numa única cadeia. Com toda a sinceridade, ela podia dizer que uma das camadas, ou várias, não se importava com aquela carcaça que envelhecia, mas havia uma outra tão vulnerável quanto a carne das rosas.  [...]
        Há duas fases nessa doença. A primeira quando a mulher olha, olha de perto: sim, aquele ombro; sim, aquele pulso; sim, aquele braço. A segunda quando ela se força a ficar diante de um espelho verdadeiro, para olhar fria e duramente para a mulher envelhecida, e se força a voltar ao espelho, mais e mais, porque sente que a pessoa que está olhando é exatamente a mesma (quando longe do espelho) que ela era aos vinte, trinta, quarenta anos. Ela é exatamente a mesma pessoa que era em menina e em jovem olhando no espelho e contando seus atrativos. Ela tem de insistir que isso é assim, essa é a verdade: não o que eu me lembro – isto é o que estou vendo, isto é o que eu sou. Isto. Isto. 

Doris Lessing, em Amor, de novo, p.254-255

29 de out. de 2020

entranha sinfonia

 

Imagem: da série Uterus de Catharina Suleiman


tu útero
tu foste paciente
como uma meia
enquanto eu guardei em ti
os meus filhos vivos e mortos
e agora
eles querem-te arrancar
como meias inúteis
para onde eu vou
para onde é que eu vou
velha menina
sem ti
útero
minha pegada ensanguentada
minha cozinha de estrogênio
meu saco negro de desejo
para onde posso eu ir
descalça
sem ti
para onde podes tu ir
sem mim


Lucille Clifton
(tradução de Bruno M. Silva, a partir da edição The collected poems of Lucille Clifton 1965-2010)