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Chovia sempre e eu custei para conseguir me levantar daquela poça de lama,
chegava num ponto, eu voltava ao ponto, em que era necessário um esforço muito
grande, era preciso um esforço tão terrível que precisei sorrir mais sozinho e
inventar mais um pouco, aquecendo meu segredo, e deu alguns passos, mas como se
faz? Me perguntei, como se faz isso de colocar um pé após o outro, equilibrando
a cabeça sobre os ombros, mantendo ereta a coluna vertebral, desaprendia, não
era quase nada, eu, mantido apenas por aquele fio invisível ligado à minha
cabeça, agora tão próximo que se quisesse eu poderia imaginar alguma coisa como
um zumbido eletrônico saindo da cabeça dele até chegar na minha, mas como se
faz? Eu reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele, para chegar
inteiro, os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como
quem brinca com um quebra-cabeça pra formar um castelo, que bosque, que verme
ou deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era o meu único
sentido, meu único destino: bater naquela porta escura onde eu batia agora. E
bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar
que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha
esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia,
talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, ideias misturadas,
tremores, água de chuva e lama e conhaque no meu corpo sujo gasto exausto
batendo feito louco naquela porta que não abria, era tudo um engano, eu
continuava batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por
dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia
muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca
mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro
gesto além de continuar batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo
batendo batendo batendo batendo batendo batendo nesta porta que não abre nunca.
Caio
Fernando Abreu, “Além do ponto”