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16 de ago. de 2018

Piercing words



para Laura

1
como quem dá forma a dor
brinco
no rosto
um estranho
corpo
o ornamento
me fala de antigas e presentes eus
admiro, higienizo e celebro
o furo
conquistado com alguma dor e uns trocados

para cicatrizar bem
água com sal é o melhor remédio, me explicaram
sigo a orientação disciplinada
três vezes ao dia choro um tanto
para lavar o local adequadamente
mesmo quando as coisas vão bem
ninguém
perguntou a razão dos olhos vermelhos
ou quem não entendeu
a questão
fui eu
isso acontece bastante comigo


2
aos doze anos coloquei no nariz um brinco de pressão
eu achava bonito e divertido, mas meu pai não nem meu irmão
meu pai perguntou quanto eu queria pra parar de usar aquilo,
justo ele que não é dado a chantagens, pelo menos não as monetárias
o outro irmão eu não me lembro o que dizia ou achava
ele também furou o nariz anos depois, com uma agulha em casa
acho que doeu muito e sangrou
no colégio um rapaz mais velho do que eu se aproximou no recreio e perguntou
“menina, tu é revoltada?”


3
hoje eu sou bem mais revoltada mas não tão menina
por isso furei o nariz
de verdade
a lágrima que escorreu quando a agulha chegou ao outro lado me trouxe alívio
que bom finalmente chorar por uma razão justa, digna, palpável

na terceira semana, meu corpo começou a reagir ao estranho corpo
as defesas cansadas quase cedendo ao combate
no rosto ao lado da joia um ponto branco cheio de pus crescia mais a cada dia
adorno nada gracioso

quanto tempo leva até cicatrizar?
era pra ficar bonita
mas agora não
brinco
mais
um problema de imunidade
fraca ou forte sou?
meu corpo aguenta, acolhe, rejeita, resiste
exatamente quando e ao quê?
algumas palavras ou combinações delas tão perfurantes
talvez alcancem o outro lado
não vou me despir dos planos indiana
só minha fantasia
não deixo fechar
o buraco
vai ficar


4
tinha um piercing no meio do caminho
entre o quarto e a rua
o tempo que se leva pra entender
alguns segundos
muito pouco nada sempre muda
o meu corpo teu?
brinco nas orelhas
no nariz
no umbigo
nos mamilos
na língua
e onde mais quiser
furar
que pelo buraco atravessa
a dor
a pergunta te ampara
e o sinal encerra o verso
corpo imune a respostas prontas
tem o tamanho exato 
do que sobra
o infinito te enfeita
meu excesso


5
insatisfeita
insaciável
curiosa
troco o brinco
não mais o ponto e sim a argola
difícil passar a joia até o outro lado
a cartilagem é dura e grossa
a pele é fina e sensível
a mudança fere
e tudo inflama outra vez
vermelho
indica
machucado
tome mais cuidado ao tocar ali
quando o ar entra e sai eu não sinto nada
além de prazer


6
você quer ver o furo que eu fiz?
a paciência que não temos, os ruídos que não ouvimos
quem deixou a janela aberta durante a tempestade?
o corpo todo, de fora pra dentro, luta
pede pausa interrompe e vai
na beirada da beira outra dimensão quase lá
brinca
e volta
cicatrizar leva tempo
o ventre
essa aventura imprevisível
marcamos pra esquecer
a carne viva
inflamação
o umbigo é um oco
já habitamos um outro corpo
lembra?
e carregamos no centro
precioso
vazio


eh