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7 de jun. de 2018

uma história mais




“A gente escreve o que ouve, nunca o que houve”
Oswald de Andrade


as pessoas tentam ser poliana e fazer o jogo do contente
agarrando como se não houvesse amanhã
sou cigano
vamos embora
como a gente é carinhoso né
se não der certo a gente pede uma pizza
não some viu
sabe o que é bom? perdoar
estou indo
que saudade
voltei
eu gosto quando tu tá voando
bonito e querido, como a dona
esse jeito que a gente tá levando não vai dar certo
pra tua casa ou pra minha?
indiferença leva ao desprezo
oi
preciso lidar com duas abstinências
o bom é fácil
quebrei a regra senti ciúme
vc tá feliz? eu também
é melhor a gente parar de se ver
eu gosto bastante de vc
eu tava com bastante saudade
par ou ímpar
adoro o seu cheiro
se não fosse assim eu nem vinha
hedonistas anarquistas
fica cada vez melhor
bom dia
a gente se entende bem né
o que eu levo?
como é bom isso
tem amores que são doídos
quer me ver hoje
eu não sou um bom namorado
bom apetite
tu é bem racional 
eu não sou uma pessoa estável 
bom trabalho
são virilhas quentes dançando
deixa eu pesquisar
eu quero que vc seja vc em toda plenitude
o que há de mais baixo, obscuro e vil na humanidade
eu gosto de te ver assim
vc sabe que eu sou meio burro
o que tá fazendo
vamos pra são bernardo
acabei de tomar um daiquiri
como a gente é culto
por quanto tempo vamos ficar nesse silêncio constrangedor
e foram vistos comprando doces
sei como é
gosto do barulho que faz
vem pra cá
metódico demais
não acha que está perdendo teu tempo?
lê pra mim
cada quilômetro andado é um quilômetro mais longe
essa eu não conhecia
vamos embora?
divirta-se
eu quero tudo
é seu caminho
tô com fome 
isso também vai passar
mais cinco minutos

eh


pequenas e incontornáveis invasões


Lygia Pape, caixa de formigas, 1967

[em resposta a pergunta da Ju Pereira]


Tem formigas por tudo aqui na minha casa, são bem pequeninas e desconfio que estão comendo as raízes da planta e também que se quiserem elas podem entrar nas engrenagens do computador e causar estragos. O que eu posso fazer além de solicitar que se vão, que encontrem outro lugar para sua marcha?
Sinto mais do que nunca o desejo de escrever, enquanto minhas mãos se movem aceleradas, o branco da tela se enche de manchinhas pretas pequeninas, insetos. Elas se acumulam e se espalham num ritual louco de reprodução instantânea. Biologia, magia, concepção. Fico esperando aquele relâmpago de luz com o teu nome. As letras o compõem como um código de acesso primordial e secreto, coreografia das formigas, o direito a subir à tona e puxar mais um tanto de ar. Emergir. Ou o inverso? São muitas perguntas, há apenas perguntas, o homem das questões sabe disso porque carrega a interrogação nas costas, formiga levando um mínimo resto imenso, precisa se mover incessantemente, tão rápido que não chega a sentir cansaço, só o vento no rosto e nos cabelos, fugaz.

eh

6 de jun. de 2018

a mulher pública


[em resposta a outra pergunta]

Se a mulher escreve e publica
seus pensamentos, ideias, poemas, romances
e o público bate palmas, uiva, relincha e rejeita em coro
ou faz corações com as duas mãos e outros gestos de congratulação
ou simplesmente se arrepia e se toca no silêncio solitário de seu corpo ou quarto
a única certeza é que
pega
mal
dita
escrita
livro
mulher


se a mulher ocupa um palco púlpito ato rua câmera tela
e exibe a cara-corpo
faz soar no microfone as palavras
no meu ouvido – ai!
públicas
lúbricas
lutas
furiosas
revoltam
mal
ditas
sejam


fazer versos não faz mal
publicar sim
aquela foto indecente na orelha do livro
a estante repleta no fundo
o vídeo da entrevista
não engana
meu
público
púbis
mal
dita
escrita


tomar chá pega bem,
é saudável e elegante
tanto melhor se for de tarde com amigas no recato do lar
tomar chop - cerveja-vinho-vodka-cachaça-whisky-tequila-saquê-conhaque-fernet no público pub
pega mal
dita
línguas más dizem
falam que
escrever no guardanapo
um poema bêbado barco
o número do telefone endereçado a alguém
pega mal
muito mal
dita


dita
dores
abundam
no público espaço
no banheiro toilete wc fb
cagam regras obtusas e podres
enquanto
falo
grande
em alto e bom som
poetisa
não
poeta
sim



eh

despoema

foto Ana Sabiá



"só derrubando furiosamente poderemos erguer algo válido e palpável: a nossa realidade"
Helio Oiticica

Olho para as estrelas enquanto tenho os pés na lama
falavas daquele filme, de tantas premissas, de constelações vizinhas, de gimnospermas
uma nova mesma história outra vez
eu acompanhava, balançava a cabeça
e a gente ria muito daquilo
desconfio acho que ríamos mais do nosso engano
e do desespero compartilhado
ou do amor?
Olhar adiante
de cima para baixo, da direita pra esquerda
seguir o sentido pré-definido
meus olhos desaprenderam
o tempo todo perseguir as pistas
letras falsas
gestos cínicos
em telas e páginas que reluzem na podridão
custa muito acumular as pedras para contenção
e na verdade não se entregar
por inteiro
a sombra cresce sorrateira no silêncio
há algo que se possa desfazer?
Novo lance, de outro ângulo eu vejo
nada nada nada que seja capaz de descrever
mas contamos mil e uma noites
em paisagens estranhas
com uma caneta eu tentei unir os sinais no teu corpo
ligar os pontos
descobrir no desenho que formaria
teu destino
nada nada nada a desvelar aqui ou além
só esse presente agora passa

eh

atravessamentos céu acima terra abaixo

Francesca Woodman

[a partir de uma outra pergunta]

“A duração é um estado em que obstáculos não conseguem esgotar o movimento. Não é uma condição de repouso, pois a mera imobilidade significa na verdade um retrocesso. A duração é o movimento de uma totalidade organizada e completa em si mesma. Esse movimento está sempre se renovando. Ele se realiza segundo leis imutáveis e cada término dá lugar a um novo começo. O objetivo é atingido por um movimento na direção interna: a inspiração, a sístole, a contração. Esse movimento se transforma num novo começo tomando a direção externa: a expiração, a diástole, a expansão.”
I ching

       Era de tarde e eu precisava escolher os poemas que ia dizer... escolher os poemas pra fazer dessa uma noite especial, pra de algum modo fazer aquela noite durar... e eu fazia com muita felicidade minha seleção amorosa... mas enquanto lia versos, lia pedaços de notícias e de posts e frutas fora da geladeira e tantas coisas e minhas mãos inquietas subindo e descendo abas e janelas e as crianças gritando lá fora, enquanto fugiam de um monstro assustador em verdade bem amigável. Era ah aaaahhhh aaaahhh e muitos risos, na minha vizinhança. E os minutos, as horas passando e eu respondendo e-mails e mensagens, o coração apertado porque precisava achar aquele poema, exatamente aquele, não sei bem qual ou onde, mas é um que me toca, marcou minha vida e meu corpo tantas vezes, e eu acredito que pode definir muito e me ajudar a dizer o que eu desejo dizer, é uma coisa grande, grandiosa, ardente, muito embora eu não me lembre de um verso sequer nem de uma palavra... procuro no arquivo do computador, na caixa de papéis dobrados, rabiscados, nenhum daqueles se parece com ele... e então penso que talvez eu tenha que escrever esse negócio... mas eu sou tão absurdamente incapaz de aproximar palavras de modo minimamente interessante... eu queria mesmo emprestar a minha voz, meus olhos, dedos, pulmões e lábios pra esse poema, sabe?! Eu queria ser a porta-voz, a porta-bandeira, a porta-passagem, a travessia que te dá acesso à imensidão, que te leva ao ponto firme e rijo da duração no meio dessa vertigem ininterrupta... talvez pra isso eu precise colocar os pés e as mãos na terra, cavar, plantar, regar com o meu sangue outra e outra e outra vez. Talvez eu devesse aproveitar os desejos, os despejos e usar as palavras pra falar que minha barriga foi cortada. Tinha esse verso no poema? Um poema sobre o ventre e o vazio, não o que falta, mas o que move e impulsiona, o sangue passando pelo corpo todo e descendo terra abaixo... fazendo raízes, rizomas, linhas de força pulsantes, versos-vórtices do poema que procuro, curo.

eh