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29 de set. de 2009

ventos uivantes


HISTÓRIA DE DETETIVE

Para quem está sempre numa paisagem estranha,
A rua irregular do vilarejo, a casa escondida entre as árvores,
Tudo perto da igreja, ou a escura casa geminada,
Ou a outra com colunas coríntias, ou cada
Apartamento proletário: em todo caso
Um lar, o centro onde as três ou quatro coisas
Que costumam acontecer a alguém, acontecem? Sim,
Quem não pode desenhar o mapa de sua vida, a sombra
Na pequena estação onde ele cruza suas amantes
E diz adeus continuamente, e repara no local
Onde o cadáver de sua felicidade foi descoberto?
Uma mendiga desconhecida? Um homem rico? Sempre um enigma
E com um passado enterrado mas quando a verdade,
A verdade sobre nossa felicidade é revelado
Quanto ficou devendo à chantagem e ao adultério.
O resto é tradicional. Tudo segue um plano:
A intriga entre o senso comum local
E aquela exasperante e genial intuição
Que está sempre no local, por acaso, antes de nós;
Tudo segue um plano, a mentira e a confissão,
Até a perseguição emocionante no fim, o tiro.
Mas até a última página uma dúvida paira :
E o veredito, foi justo? O nervosismo do juiz,
Aquela pista, o protesto das tribunas,
E até nosso sorriso … pois é . . .
O tempo todo matamos o tempo. Alguém tem que pagar
Pela perda de nossa felicidade: ela mesma.



W. H. Auden
traduzido por Rodrigo Garcia Lopes

26 de set. de 2009

primavera, enfim

S.

Dia azul. Um tajá sagitado. Orquídeas - A porta grande de vidro se abre ao jardim - As linhas da sala perpassam os acúleos dos céreos. Areia. Grama. Uma pedra cortada em cubo. Entre um Lüpertz, entre um Rothenberg, o homem esmaga o cigarro na alpaca do cinzeiro e pensa no diz azul que se abre como um livro, como uma flor, como uma ferida. Pensa no esquilo e no gato de Creeley. Pensa no que fazer com o cadáver da mulher sobre o estofo vermelho.

Francisco dos Santos
em A imagem recorrente

22 de set. de 2009

equívocos secundários, terciários...

Entrar na dimensão do erro fatal. Uma fome sem fim. Acúmulo de atos estúpidos. Ir ao máximo do egoísmo conduz ao abandono? Marcar a carne. Todas as transformações impulsionadas por aquele lapso. Confiar exclusivamente na incapacidade da razão e deixar-se rir. Foi mesmo uma anedota. E tudo completamente diferente agora, por trás desta máscara de couro. Sou quem obedece. Cumpro meu papel no jogo. Espero os dias. Curar torsão, contusão, hematoma, dermatite. Estou em dois lugares, dois corpos, mas ainda há espaço demais. Gravar na carne e deixar cair um pedaço a mais. Não existe alma nenhuma aqui, só sangue quente pulsando.

eh 

20 de set. de 2009

muitas direções. um passo.

Tantas gerações nos antecederam, tanto saber foi maior que a ciência, tanto afeto e ópio fizeram acreditar no homem, tanta morte gloriosa coroou a convicção, tanta morte violenta conferiu realidade à combinatória das piores probabilidades, tantas cabeças cortadas e enroladas em verso metrificado e no fluxo informe do bom senso, tanta arbitrariedade e tanta sutileza reunidas no fio do relho e da frase tensa, tanta chuva e tanta laranja, e com as mãos secas, aqui estamos — nus, mudos, indigentes, como se tivéssemos acabado de nascer. Nosso pecado de origem foi o de não ter nascido antes, antes da história, antes da conversa, antes do banho. Giramos em torno de tudo, até que tudo passe a girar em torno de nós e refaça a sangrenta marcha na direção do passado. (Hoje dispensei os chinelos, desci descalço na direção da porta do prédio. Tudo me levava à comunhão com o solo, a um espírito de precisão. Mas nunca na sola dos pés percebeu-se um tamanho embaraço. E a razão do próximo passo feriu-se à sombra amarela da repetição. Olhei bem direto no metal e no vidro da porta, queria derretê-los, mas minha força se dividiu em duas. Uma delas partiu em direção à rua, levando o lixo, fiel à sua humana pista, e desfez-se, pó de dias. A outra aqui ficou, ciência sem método, acumulação sem dono, direção sem rumo.) O que esperam é que os leve pela mão e sirva o café ou que a ambigüidade os libere do desconforto do sentido. Os que chegarem a tempo, verão. E nada além de uma prosa, limpa prossegue.

Marcos Siscar

18 de set. de 2009

dois quintos


A deseducação dos cinco sentidos

Paladar

            Minha mulher briga comigo por eu comer rápido, fazendo feio quando temos visita. E nunca terei coragem de explicar o porquê disso.
            Ela se irrita por eu não me preocupar com o cardápio e não ter preferência por bebidas. Comer é, para mim, uma necessidade. Mais nada.
            Suas manias gastronômicas me são indiferentes, sento à mesa com pressa, geralmente deixo o computador ligado no escritório e, mal encho o prato – coloco sempre uma única vez, para não perder tempo -, me atiro com voracidade sobre aquele monte de vitaminas e calorias que não me excita nem me alegra. Jamais toco nas sobremesas, nem bebo sucos ou refrigerantes. Gosto de água, tomada depois da refeição. Encho a boca, movimento o conteúdo entre os dentes, e engulo. Viro em seguida o restante e, esteja quem estiver à mesa, peço licença para voltar ao escritório. Pode parecer gulodice ou mania de trabalhar, mas é apenas defeito de formação.
            Na infância de menino de rua, antes de ser adotado, eu comia o que encontrava pela frente. Freguês cativo das latas de lixo, engolia rapidamente, para não correr o risco de ser roubado pelos outros, tudo que tivesse qualquer parentesco com comida. Engolia sem mastigar. Foi assim que me mantive vivo, educando minha boca para ignorar o sabor forte das coisas estragadas.
            Não culpo minha mulher por censurar este meu costume. Ela não sabe nada de meu passado e sempre teve uma vida decente. Como dizer a ela que mesmo seus pratos mais requintados me trazem à lembrança a lavagem servida aos porcos?


Tato

            De tanto trabalhar no serviço pesado, minhas mãos viraram dois cascos. Não consigo mais pegar coisas pequenas e delicadas. Elas perderam as habilidades suaves, embora eu possa segurar brasas vivas. É impossível, no entanto, catar uma agulha caída no chão. E quando toco em tecido fino, ele se gruda em meus calos.
            Isso me impede de soletrar a Palavra de Deus, porque toda vez que tento folhear a bíblia, os dedos machucam o papel fino e não consigo virar a página. A mão do homem não foi feita apenas para aplainar o cabo das ferramentas.
            Às vezes saio a noite em busca de companhia. Levo alguma mulher para hotéis de programa. Ela arranca a roupa, apago a luz e tento entender seu corpo. Minhas mãos não sentem a pele e as curvas. Passam cegas sobre os contornos. É como uma lixa alisando madeira. Se tento ler os seios, apenas percebo uma saliência sem forma que não me excita. Geralmente me alivio ligeiro.
            Em verdade, a vida me tirou as mãos e no lugar deixou dois instrumentos de trabalho que desconhecem o alfabeto do tato.

Miguel Sanches Neto

15 de set. de 2009

claro


Cicerone cego


[...]


A insônia muitas vezes é um tipo de lucidez às três da madrugada onde nos engolfa não aos borbotões, mas incisiva e parcimoniosamente a explicação de tudo. O mover-se na terrena. O que não evita a estranheza, um extenuar-se, alma-neurônio, ou o que nos dois pensa que alcança. Posso falar para os fantasmas, já que fisiologicamente ninguém me acompanha.
            O mapa-intestinal que sonhei lograr desimporta. Toda cidade é uma mesma cidade. O que somos (?) não deixará de ser se muda a paisagem. Tendo, apesar de cego, a buscar postos privilegiados de observação, na cobertura onde estou percebo toda a baía e grande parte da costa. O café com conhaque acalenta. Ah... o silêncio é um deleite.
            Lucidez, insônia não quer dizer apenas razão. O neurônio é uma metafísica. O que massacra o megalômano é saber que o universo é indestrutível. E esse clarão, que pode ser cegante, mas suportável, amplia-se na noite a partir do seu corpo que tem fome e sede, estende a mão come e bebe, e é agora e ontem o primeiro e o último homem e todo o intervalo entre. É pleno, talvez beire o delírio, mas é agudo demais pra ser irreal. Esta explicação de tudo, que até a ânsia da síntese e o relatar esta ânsia se torna dispensável. E o niilismo aí não se dá, apenas a constatação sem renúncia, covardia ou omissão de que o vento basta. A hora menos pior é a que precinde de signo, porque a sede do signo é insaciável.

***



           
        O senhor também concorda? Realmente, nas ruminações com o travesseiro somos sérios e quantas vezes fatalistas. Por ali.




João Filho

13 de set. de 2009

elos

O vento e eu somos ligados pela vida porque nós nos amamos nós nos amamos por que nós nos amávamos por que passamos noites inteiras juntos falando sobre o Dique do mar, no hotel Belle-Vue, em Petite-Synthe, nos nossos quartinhos, na redoma dos nossos carros, nos acostamentos e nas pequenas estradas de Creuse e de Ardèche, nos oferecendo presentes, nos oferecendo sentimentos e coragem, preparando a guerra, porque nós éramos dois combatentes noturnos, sua dureza, minha loucura, minha dureza, sua precisão, porque nós estávamos sozinhos no mundo nas ruas frias de Dunkerque, porque nós não podíamos nos separar, que andávamos milhares de quilômetros para nos encontrar, para se rever, para se ver uma noite, porque nós não podíamos falar a não ser nos falar, porque nós não podíamos amar a não ser nos amar, porque nós escrevíamos, porque trocávamos nossas queixas, nossas perdições, nossas crenças, nossas fés, nossas tripas, nossos endereços, nossos discursos, nossos ensaios, nossos rascunhos, nossos sangues, nossas cobertas e nossos poemas.


C. Tarkos
(em tradução de Heitor Ferraz)

12 de set. de 2009

como se chama


Um beijo. Eles se beijam. Ele toma sua boca em sua boca, ela toma sua boca em sua boca, eles se beijam. Ele abre seus lábios à sua boca, à sua língua, ela abre seus lábios aos seus lábios, à sua boca, à sua língua, ela gira sua língua em sua boca, ele gira sua língua em sua boca, ele descobre seu beijo, ela descobre a sensação de seu beijo, sua língua doce em sua boca, sua língua doce contra sua língua, ele envolve sua língua em sua língua, ele a mistura, ela gira sua língua contra sua língua, eles se beijam, ela a mistura, eles se misturam, ela cede sua boca à sua boca, eles se dão um beijo, ela lhe dá um beijo e sua língua, ele acaricia sua língua em sua boca, ela acaricia sua língua em sua boca, ela o deixa entrar, eles se amam, sua língua está em sua boca, ela mete sua língua em sua boca, seus lábios estão colados contra seus lábios, ela acaricia sua língua contra sua língua que gira em sua boca contra sua língua, acaricia sua língua contra sua língua quente e oferecida, ele mete sua língua em sua boca, e então eles se amam, eles se beijam.

C. Tarkos 
(tradução de Masé Lemos)

9 de set. de 2009

zunido

A VOZ DO SANGUE, O SANGUE DA VOZ


Tanto silêncio no ringue, no ringue
e na fome, tanto burburinho zoando simultaneamente,
que não posso distingui-los. E mesmo antes dos golpes
na cabeça, e mesmo antes de qualquer golpe
revolvendo as entranhas pelo avesso
(antes dos 4.500 quilos por impacto), e, mesmo antes,
tanto silêncio no ringue, no ringue
e na fome, tanto burburinho zoando
simultaneamente, que não posso distingui-los.
O ringue é o ringue, a fome é a fome, mas no ringue
(como na fome, como na fome do ringue, como no ringue
da fome), o silêncio é silêncio e burburinho,
e o burburinho, burburinho e silêncio. Quando,
no canto do amparo – sentado, curativos imediatos,
os segundos trabalhando a meu favor, a respiração em busca
de um ponto pacífico –, ouço a voz nítida do treinador
se erguendo do alarido da multidão e de ninguém,
não a escuto como um mandamento: infiel
e pecador, poderia traí-la. Escuto essa voz
desenrolar as últimas ataduras que envolvem o punho
do meu coração, espremê-lo ao sumo,
ao ponto de o gosto do sangue (de o gosto da fome) brotar compri-
mindo as gengivas por entre os dentes e o protetor,
me dando a certeza de que o próximo soar do gongo
será o último badalo com o qual meu adversário sonhará
antes de beijar a encardida lápide da lona.


Alberto Pucheu

8 de set. de 2009

colher


La antología de poemas llega
por correo.
La trae un enano en una cajá de cartón.
Mis amigas y yo no fuimos seleccionadas.
La poesia latinoamericana es por completo un fracaso;
no es como girar o hacer el amor.
Leeremos otra cosa, o le pondremos droga al té.
En un acto de justicia quemaremos el libro,
ahora el estado no llenará nuestras carteras
de oro, ni nos darán un pasaje para viajar
gratis por el MERCOSUR.



Cecilia Pavón

4 de set. de 2009

roer


INTRODUÇÃO À ARTE DAS MONTANHAS

Um animal passeia nas montanhas.
Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede,
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
Puxado sempre para cima, o animal é um ímã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,
ainda, que agora tem de aprender a descer.


(De Argumentos Invisíveis, 1995)

JUSTIFICAÇÃO DE DEUS

o que eu chamo de deus é bem mais vasto
e às vezes muito menos complexo
que o que eu chamo de deus. Um dia
foi uma casa de marimbondos na chuva
que eu chamei assim no hospital
onde sentia o sofrimento dos outros
e a paciência casual dos insetos
que lutavam para construir contra a água.
Também chamei de deus a uma porta
e a uma árvore na qual entrei certa vez
para me recarregar de energia
depois de uma estrondosa derrota.
Deus é o meu grau máximo de compreensão relativa
no ponto de desespero total
em que uma flor se movimenta ou um cão
danado se aproxima solidário de mim.
E é ainda a palavra deus que atribuo
aos instintos mais belos, sob a chuva,
notando que no chão de passagem
já brotou e feneceu várias vezes o que eu chamo de alma
e é talvez a calma
na química dos meus desejos
de oferecer uma coisa.


(De Sibilitz, 1981)

Leonardo Fróes