[...] Nos vidros, a neve ia descendo. Lentamente. O Einar
desesperava-se a tentar perceber se já poderíamos abrir as portas, abrir
caminho, ter por onde ir. Mas durante duas semanas não foi possível sair. O
tempo a descontar devagar, as horas todas trocadas e os olhos cansados de
tricotarmos à pouca luz das velas, fazendo fogo no detrás do altar, onde o
Steindór inventara uma lareira para que o frio não matasse o Einar.
Tricotávamos a lã que sobrava e voltávamos aos livros, a ler tudo outra vez e
só reparávamos nas palavras. Queríamos nada saber das histórias. Prestávamos atenção
às palavras para sabermos como eram ditas as coisas. Porque alguns livros
pareciam perfumar a linguagem, outros sujavam-na e outros ignoravam-na. Os
livros podiam ser atentos ou desatentos ao modo como contavam. Nós,
inspecionando muito rigorosamente, achávamos melhores aqueles que falavam como
se inventassem modos de falar. Para percebermos melhor o que, afinal, era
reconhecido mas nunca fora dito antes. Os melhores livros inauguravam
expressões. Diziam-nas pela primeira vez como se as nascessem. Ideias que
nasciam para caberem nos lugares obscuros da nossa existência. Andávamos como
pessoas com luzes acesas dentro. As palavras como lâmpadas na boca. Iluminando
tudo no interior da cabeça. Como o cristal natural do Einar, que o deixava
mágico. As palavras deixavam-nos mágicos. Eram os livros que traziam feitiço e
punham tudo a ser outra coisa. A boca elétrica, dizia alto. Eu e o Einar escutávamos
estudando o mundo.
Valter Hugo Mãe, A desumanização,
p.124-125