16 de fev. de 2021
contornos atemporais
11 de fev. de 2021
devoções incertas
Isadora Krieger, “Explorações cardiomitológicas”, editora da casa, 2019
9 de fev. de 2021
dois animais sa(n)grados
estamos sentados um de costas para o outro
as pernas dobradas, as mãos nos limites das próprias mãos
monges preguiçosos em estado de sonolência,
[inspirando e expirando o ar tóxico – da covardia?
O ancestral conflito entre o palco e a caverna
Mas não, este nunca foi o nosso principal embate.
[já havíamos iniciado o exaustivo trabalho de
[tirar as milhares de lâmpadas do palco e de
[tentar acendê-las na caverna.
agora tudo se resume às nossas novas posições, que por
[mais ilusórias que possam ser, e talvez exatamente
[por isto, geram a pior das insuficiências: um animal
[sagrado tentando escapar da areia movediça.
não adivinho mais o alinhamento do teu rosto – e eu
[era especialista nisto.
“tenho ânsia desmedida de te contar a minha história”, tu
dizias.
e para espanto de ambos, descobrimos que fui a mesa
[na qual esteve a cesta dos pães que te alimentaram
[durante a infância, que foste a cama que sustentou
[as primeiras grandes elaborações do meu
[inconsciente.
herdamos (da prudência? do medo? da aceitação do fim?)
[aquela indiferença brutal de levantar rochas
[mentalmente com um único objetivo: o de soltá-las
[(não sem alguma hesitação) em cima dos musgos
[capazes de amaciar os nossos traseiros e nos colocar
[novamente um de frente para o outro.
preciso admitir: tens tido mais sucesso do que eu.
preciso perguntar: desde quando tens também tanta
[intimidade com os minerais?
preciso transcrever uma indagação ontológica
[cosmológica imemorial: como ousas
[esmagar a beleza em nome da beleza?
tento colocar entre nós o espelho duplo deus/humano
tento mostrar que os afrescos nos pertencem mutuamente
os murais estarem divididos não significa que as crianças,
[o bosque, a ponte, as árvores floridas sejam realidades
[apenas tuas. Não significa que as serpentes, o lodo, a
[lua, os peixes escuros sejam realidades apenas minhas.
mas para alguém que escreve tantas derivações da
[palavra “tentativa”, e para alguém que ignora
[todas as formas que tal palavra toma mesmo
[debaixo de escombros, não haveria outro
[destino além do fracasso:
continuamos sentados um de costas para o outro.
4 de fev. de 2021
covarde divina criança daninha
Hino à beleza
Vens tu do céu profundo ou sais do precipício,
Beleza? Teu olhar, divino mas daninho,
Confusamente verte o bem e o malefício,
E pode-se por isso comparar-te ao vinho.
Em teus olhos refletes toda a luz diuturna;
Lanças perfumes como a noite tempestuosa;
Teus beijos são um filtro e tua boca uma urna
Que torna o herói covarde e a criança corajosa.
Provéns do negro abismo ou da esfera infinita?
Como um cão te acompanha a Fortuna encantada;
Semeias ao acaso a alegria e a desdita
E altiva segues sem jamais responder nada.
Calcando mortos vais, Beleza, a escarnecê-los;
Em teu escrínio o Horror é joia que cintila,
E o Crime, esse berloque que te aguça os zelos,
Sobre teu ventre em amorosa dança oscila.
A mariposa voa ao teu encontro, ó vela,
Freme, inflama-se e diz: “Ó clarão abençoado!”
O arfante namorado aos pés de sua bela
Recorda um moribundo ao túmulo abraçado.
Que venhas lá do céu ou do inferno, que importa,
Beleza! Ó monstro ingênuo, gigantesco e horrendo!
Se teu olhar, teu riso, teus pés me abrem a porta
De um infinito que amo e que jamais desvendo?
De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,
Que importa, se és quem fazes – fada de olhos suaves,
Ó rainha de luz, perfume e ritmo cheia! –
Mais humano o universo e as horas menos graves?
O gato
Vem cá, meu gato, aqui no meu regaço;
Guarda essas garras devagar,
E nos teus belos olhos de ágata e aço
Deixa-me aos poucos mergulhar.
Quando meus dedos cobrem de carícias
Tua cabeça e o dócil torso,
E minha mão se embriaga nas delícias
De afagar-te o elétrico dorso,
Em sonho a vejo. Seu olhar, profundo
Como o teu, amável felino,
Qual dardo dilacera e fere fundo,
E, dos pés à cabeça, um fino
Ar sutil, um perfume que envenena
Envolvem-lhe a carne morena.
Charles Baudelaire, “As flores do mal”, tradução de Ivan Junqueira