Ana Mendieta, Imagem de Yagul, 1973
as mulheres são todas iguais
todas, sem exceção. as de ontem, iguais às de hoje, as de hoje
iguais às de amanhã
que não se engane o meu amor, porque em breve
a ex dele voltará através de mim, para dizer pela minha boca o
que não pode dizer pela sua
eu farei o mesmo, pela boca da próxima
e assim sucessivamente
é uma maldição
entramos na vida de um homem como se fôssemos cada uma
uma só
com o passar do tempo acabamos nos tornando sempre a
mesma
juramos sempre o mesmo amor no começo
rogamos sempre as mesmas pragas antes de bater a porta
no final
(foi por causa de um sonho
que lisa começou a ler sylvia plath
sylvia havia terminado com ted há pouco quando se suicidou
usando gás de cozinha
assia ainda estava casada com ele quando repetiu o ato
a mesma cena
o mesmo gás
o mesmo homem
as mulheres são todas iguais)
pelas mãos de Salomé, também eu servi a cabeça d ejoão batista
numa bandeja
pelas mãos de Lucrécia bórgia, também eu misturei cantarella no
vinho
e terminei o dia envenenando um marido
esta noite o meu amor se deitará com um novo amor. Nela
estaremos todas
repetíveis, labirínticas
espelhos
espectros umas das outras
de madrugada ela o seduzirá com beijos e cheiros. quando ele
descobrir que é a mesma mulher de sempre
o mesmo antigo demônio fêmeo
nessa hora será tarde. já a terá fecundado
já terá continuado nossa linhagem má
numa filha
*
*
amar o homem que tu és
amar o homem que tu és apesar do homem
amar sabendo que um homem pode se dar ao luxo de se perder
no amor – mas não uma mulher
amar-te, meu amor
mas sem esquecer que a mulher de nós dois sou eu
eu não posso me esquecer de mim nas tantas mulheres que fui
não posso esquecer eva
não posso esquecer agar atravessando o deserto com Ismael no
colo
tantas mães atravessam a cidade de são paulo com seus filhos
no colo, às seis e pouco da manhã
os tempos mudam, as mulheres permanecem as mesmas
não há mãe que não tenha acordado alguma noite só para se
certificar de que o ar também entra nos pulmões mais frágeis da
casa
não há mãe que não tenha passado alguma vez pelo terror de
imaginar que talvez o peito não dê leite
que não seja capaz de chorar um rio no meio do saara
e que chorando não sonhe com um modo de decantar o sal da
água
para dá-la de beber a uma boca com sede
meu amor, somos tão sozinhas
não posso te amar sem ressalvas
sem lembrar o tempo todo que no fundo só temos umas às outras
ninguém mais
ni una a menos
não esquecerei joana, queimada em praça pública
a beata Lindalva
a virgem maria teresa goretti
não devo esquecer quantos litros de sangue uma mulher
deve perder
para que cesse o pulso
e assim sem pulso possa finalmente ser considerada santa pela
nossa santa igreja
tu falas sobre como as aves da região são exuberantes
eu penso que também gosto de observá-las
há noites em que fico mais de hora sentada à soleira da porta
nos fundos de casa
olho o copado da jabuticabeira
a roupa no varal
muitas de nós ainda passam noites em claro pelas mulheres
de salém
sou uma delas
sei que é preciso cuidar para que os urubus não comam corpos
inteiros da nossa memória
se vierem graúnas, em bandos
e arrancarem a bicadas os fios de cabelo
para fazerem ninhos
se vierem beija-flores e furarem os olhos, para beberem do rio
se quiserem levar também os cílios, os pelos do sexo, até lascas
de unha – que levem
mas é preciso cuidar para que pelo menos uma parte do corpo
de toda mulher morta
reste intacta
o coração
o projeto de libélula que ardeu em algum dos seus gestos
o nome
o silêncio
a mim não me cabe amar inadvertidamente
não posso esquecer das últimas horas de eloá
o carro em que marielle estava na noite de 14 de março de 2018
uma mulher a cada duas horas no brasil
seis mulheres a cada hora no mundo
não esquecerei micheliny, filha da filha da índia que foi pega no
laço, como um animal
não esquecerei nina, que não esquecerá bruna
ambas se erguendo juntas da mesma noite
não esquecerei bárbara, o olho roxo, a costela trincada
não esquecerei minha irmã
minha mãe
minha avó, morta com um tiro no peito
tu dizes que me amas, eu digo que te amo mais
eu te amo mais, meu amor
porque tu me amas com amor apenas
mas eu tive que aprender a te amar com ódio
Mar Becker, em A mulher submersa (Urutau, 2020)
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