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16 de fev. de 2021

contornos atemporais

 


Ana Mendieta, Imagem de Yagul, 1973


as mulheres são todas iguais

todas, sem exceção. as de ontem, iguais às de hoje, as de hoje
iguais às de amanhã

que não se engane o meu amor, porque em breve
a ex dele voltará através de mim, para dizer pela minha boca o
que não pode dizer pela sua

eu farei o mesmo, pela boca da próxima
e assim sucessivamente

é uma maldição
entramos na vida de um homem como se fôssemos cada uma
uma só

com o passar do tempo acabamos nos tornando sempre a
mesma

juramos sempre o mesmo amor no começo
rogamos sempre as mesmas pragas antes de bater a porta
no final

(foi por causa de um sonho
que lisa começou a ler sylvia plath

sylvia havia terminado com ted há pouco quando se suicidou
usando gás de cozinha
assia ainda estava casada com ele quando repetiu o ato

a mesma cena
o mesmo gás
o mesmo homem

as mulheres são todas iguais)

pelas mãos de Salomé, também eu servi a cabeça d ejoão batista
numa bandeja

pelas mãos de Lucrécia bórgia, também eu misturei cantarella no
vinho
e terminei o dia envenenando um marido

esta noite o meu amor se deitará com um novo amor. Nela
estaremos todas

repetíveis, labirínticas
espelhos
espectros umas das outras

de madrugada ela o seduzirá com beijos e cheiros. quando ele
descobrir que é a mesma mulher de sempre

o mesmo antigo demônio fêmeo

nessa hora será tarde. já a terá fecundado
já terá continuado nossa linhagem má

numa filha


*
*

amar o homem que tu és
amar o homem que tu és apesar do homem

amar sabendo que um homem pode se dar ao luxo de se perder
no amor – mas não uma mulher

amar-te, meu amor
mas sem esquecer que a mulher de nós dois sou eu

eu não posso me esquecer de mim nas tantas mulheres que fui

não posso esquecer eva
não posso esquecer agar atravessando o deserto com Ismael no
colo

tantas mães atravessam a cidade de são paulo com seus filhos
no colo, às seis e pouco da manhã
os tempos mudam, as mulheres permanecem as mesmas
não há mãe que não tenha acordado alguma noite só para se
certificar de que o ar também entra nos pulmões mais frágeis da
casa

não há mãe que não tenha passado alguma vez pelo terror de
imaginar que talvez o peito não dê leite

que não seja capaz de chorar um rio no meio do saara
e que chorando não sonhe com um modo de decantar o sal da
água
para dá-la de beber a uma boca com sede

meu amor, somos tão sozinhas

não posso te amar sem ressalvas
sem lembrar o tempo todo que no fundo só temos umas às outras

ninguém mais
ni una a menos

não esquecerei joana, queimada em praça pública
a beata Lindalva
a virgem maria teresa goretti

não devo esquecer quantos litros de sangue uma mulher
deve perder
para que cesse o pulso
e assim sem pulso possa finalmente ser considerada santa pela
nossa santa igreja

tu falas sobre como as aves da região são exuberantes

eu penso que também gosto de observá-las

há noites em que fico mais de hora sentada à soleira da porta
nos fundos de casa
olho o copado da jabuticabeira
a roupa no varal

muitas de nós ainda passam noites em claro pelas mulheres
de salém

sou uma delas
sei que é preciso cuidar para que os urubus não comam corpos
inteiros da nossa memória

se vierem graúnas, em bandos
e arrancarem a bicadas os fios de cabelo
para fazerem ninhos
se vierem beija-flores e furarem os olhos, para beberem do rio
se quiserem levar também os cílios, os pelos do sexo, até lascas
de unha – que levem
mas é preciso cuidar para que pelo menos uma parte do corpo
de toda mulher morta
reste intacta

o coração
o projeto de libélula que ardeu em algum dos seus gestos
o nome
o silêncio

a mim não me cabe amar inadvertidamente

não posso esquecer das últimas horas de eloá
o carro em que marielle estava na noite de 14 de março de 2018

uma mulher a cada duas horas no brasil
seis mulheres a cada hora no mundo

não esquecerei micheliny, filha da filha da índia que foi pega no
laço, como um animal

não esquecerei nina, que não esquecerá bruna
ambas se erguendo juntas da mesma noite

não esquecerei bárbara, o olho roxo, a costela trincada

não esquecerei minha irmã
minha mãe
minha avó, morta com um tiro no peito

tu dizes que me amas, eu digo que te amo mais

eu te amo mais, meu amor

porque tu me amas com amor apenas
mas eu tive que aprender a te amar com ódio


Mar Becker, em A mulher submersa (Urutau, 2020) 


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