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9 de fev. de 2021

dois animais sa(n)grados

 

Love, Alexander Milov


estamos sentados um de costas para o outro
as pernas dobradas, as mãos nos limites das próprias mãos
monges preguiçosos em estado de sonolência,
   [inspirando e expirando o ar tóxico – da covardia?
O ancestral conflito entre o palco e a caverna
Mas não, este nunca foi o nosso principal embate.
[já havíamos iniciado o exaustivo trabalho de
    [tirar as milhares de lâmpadas do palco e de
[tentar acendê-las na caverna.

agora tudo se resume às nossas novas posições, que por
     [mais ilusórias que possam ser, e talvez exatamente
  [por isto, geram a pior das insuficiências: um animal
[sagrado tentando escapar da areia movediça.

não adivinho mais o alinhamento do teu rosto – e eu
[era especialista nisto.
“tenho ânsia desmedida de te contar a minha história”, tu
dizias.
e para espanto de ambos, descobrimos que fui a mesa
    [na qual esteve a cesta dos pães que te alimentaram
 [durante a infância, que foste a cama que sustentou
[as primeiras grandes elaborações do meu
[inconsciente.

herdamos (da prudência? do medo? da aceitação do fim?)
[aquela indiferença brutal de levantar rochas
        [mentalmente com um único objetivo: o de soltá-las
[(não sem alguma hesitação) em cima dos musgos
           [capazes de amaciar os nossos traseiros e nos colocar
[novamente um de frente para o outro.

preciso admitir: tens tido mais sucesso do que eu.
preciso perguntar: desde quando tens também tanta
[intimidade com os minerais?
preciso transcrever uma indagação ontológica
[cosmológica imemorial: como ousas
        [esmagar a beleza em nome da beleza?

tento colocar entre nós o espelho duplo deus/humano
tento mostrar que os afrescos nos pertencem mutuamente
os murais estarem divididos não significa que as crianças,
    [o bosque, a ponte, as árvores floridas sejam realidades
        [apenas tuas. Não significa que as serpentes, o lodo, a
     [lua, os peixes escuros sejam realidades apenas minhas.
mas para alguém que escreve tantas derivações da
     [palavra “tentativa”, e para alguém que ignora
        [todas as formas que tal palavra toma mesmo
[debaixo de escombros, não haveria outro
[destino além do fracasso:
continuamos sentados um de costas para o outro.

Isadora Krieger, em “Explorações cardiomitológicas”, editora da casa, 2019

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