Foto: Elisa Tonon
nunca soube ao certo o que fazer com o centro da catedral
este monumento magnânimo/opressor erguido por
[mistérios e partículas
nunca soube discernir o oco da claraboia
amar sempre implicou em abrir caixões cheios de
[espelhos, debruçar-se no impronunciável,
[atirar-se em poços secos, entrar numa casa na
[qual os lençóis brancos sobre os móveis não
[conseguiriam impedir o acúmulo de poeira
todos os dias homens e mulheres ajoelham-se diante dos
[fachos que emprestando-lhe luz tornam a poeira visíel
[e revelam a sua beleza – os olhos atônitos
todos os dias homens e mulheres amam
todos os dias homens e mulheres descobrem que a
[beleza antecede a perda – e não houve sequer
[um que encontrou nela um cílio de horizonte
muitos se suicidaram após tal revelação
não sem antes por vergonha e terna cautela assassinarem
[os próprios filhos
enquanto estes dormiam profundamente
todas as noites homens e mulheres se refugiam na posição de feto
repudiam as paredes frias do transitório
escondem-se debaixo de camas hospitalares
empilham garrafas vazias, brinquedos quebrados e
[compêndios sobre a fatalidade do nada
todas as noites e todos os dias homens e mulheres são
[arremessados uns pelos outros na encruzilhada
[que não apresenta direções a não ser para o lugar
[mais inóspito e indesejado:
o centro da catedral.
acrobatas cegos criados por algum demiurgo comovido
[pelo tédio passarão os restos de suas vidas fazendo de
[absolutamente tudo para ludibria-lo (ou seja:
[ludibriarem-se):
trabalharão tarde da noite em edifícios comerciais
investigarão os confins da célula e da psique
elaborarão formas sutis de decodificar o inconsciente
serão displicentes com os próprios sonhos
lerão com voz altíssima as parábolas de cristo
declararão guerras e mais guerras
escreverão grandes romances
contarão histórias ao lado de uma pequenina cama
educarão crianças – erigirão mais leis para elas
reformarão bancos e cartórios
assinarão milhões de vezes um vago nome
entrarão em casa sem nunca de fato abrirem a sua
[verdadeira porta
menosprezarão as estrelas que contam segredos de
[galáxias distantes e extremamente próximas
dizimarão florestas inteiras por menosprezá-las
tramarão contra os irmãos para herdarem as terras dos
[pais que não amaram – ou que amaram demais
darão festas para os filhos desejarem algo antes de
[apagarem a vela
desejarão nunca terem nascido – e, paradoxalmente,
[desejarão nunca morrer
nunca soubemos ao certo o que fazer com o centro da
[catedral
nunca soubemos discernir o oco da claraboia – precisa
[amálgama
mas sempre haverá dois jovens muito jovens sentados na
[calçada
beijando-se pela primeira vez, enquanto o sol se põe.
Isadora Krieger, “Explorações cardiomitológicas”, editora da casa, 2019
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