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11 de fev. de 2021

devoções incertas


Foto: Elisa Tonon


nunca soube ao certo o que fazer com o centro da catedral
este monumento magnânimo/opressor erguido por
[mistérios e partículas
nunca soube discernir o oco da claraboia
amar sempre implicou em abrir caixões cheios de
[espelhos, debruçar-se no impronunciável,
       [atirar-se em poços secos, entrar numa casa na
          [qual os lençóis brancos sobre os móveis não
[conseguiriam impedir o acúmulo de poeira

todos os dias homens e mulheres ajoelham-se diante dos
     [fachos que emprestando-lhe luz tornam a poeira visíel
[e revelam a sua beleza – os olhos atônitos
todos os dias homens e mulheres amam
todos os dias homens e mulheres descobrem que a
       [beleza antecede a perda – e não houve sequer
           [um que encontrou nela um cílio de horizonte
muitos se suicidaram após tal revelação
não sem antes por vergonha e terna cautela assassinarem
[os próprios filhos
enquanto estes dormiam profundamente 

todas as noites homens e mulheres se refugiam na posição de feto
repudiam as paredes frias do transitório
escondem-se debaixo de camas hospitalares
empilham garrafas vazias, brinquedos quebrados e
      [compêndios sobre a fatalidade do nada
todas as noites e todos os dias homens e mulheres são
[arremessados uns pelos outros na encruzilhada
         [que não apresenta direções a não ser para o lugar
[mais inóspito e indesejado:
o centro da catedral.

acrobatas cegos criados por algum demiurgo comovido
    [pelo tédio passarão os restos de suas vidas fazendo de 
            [absolutamente tudo para ludibria-lo (ou seja:
                                                        [ludibriarem-se):
trabalharão tarde da noite em edifícios comerciais
investigarão os confins da célula e da psique
elaborarão formas sutis de decodificar o inconsciente
serão displicentes com os próprios sonhos
lerão com voz altíssima as parábolas de cristo
declararão guerras e mais guerras
escreverão grandes romances
contarão histórias ao lado de uma pequenina cama
educarão crianças – erigirão mais leis para elas
reformarão bancos e cartórios
assinarão milhões de vezes um vago nome
entrarão em casa sem nunca de fato abrirem a sua
                                                [verdadeira porta
menosprezarão as estrelas que contam segredos de
        [galáxias distantes e extremamente próximas
dizimarão florestas inteiras por menosprezá-las
tramarão contra os irmãos para herdarem as terras dos
        [pais que não amaram – ou que amaram demais
darão festas para os filhos desejarem algo antes de
                                                    [apagarem a vela
desejarão nunca terem nascido – e, paradoxalmente, 
                                                [desejarão nunca morrer

nunca soubemos ao certo o que fazer com o centro da 
                                                                [catedral
nunca soubemos discernir o oco da claraboia – precisa
                                                                   [amálgama
mas sempre haverá dois jovens muito jovens sentados na 
                                                                    [calçada
beijando-se pela primeira vez, enquanto o sol se põe.

Isadora Krieger, “Explorações cardiomitológicas”, editora da casa, 2019 

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