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21 de nov. de 2018

à revelia


A suposta existência

Como é o lugar
quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas
sem ser vistas?

O interior do apartamento desabitado,
a pinça esquecida na gaveta,
os eucaliptos à noite no caminho
três vezes deserto,
a formiga sob a terra no domingo,
os mortos, um minuto
depois de sepultados,
nós, sozinhos
no quarto sem espelho?

Que fazem, que são
as coisas não testadas como coisas,
minerais não descobertos - e algum dia
o serão?

Estrela não pensada,
palavra rascunhada no papel
que nunca ninguém leu?
Existe, existe o mundo
apenas pelo olhar
que o cria e lhe confere
espacialidade?

Concretitude das coisas: falácia
de olho enganador, ouvido falso,
mão que brinca de pegar o não
e pegando-o concede-lhe
a ilusão de forma
e, ilusão maior, a de sentido?

Ou tudo vige
planturosamente, à revelia
de nossa judicial inquirição
e esta apenas existe consentida
pelos elementos inquiridos?
Será tudo talvez hipermercado
de possíveis e impossíveis possibilíssimos
que geram minha fantasia de consciência
enquanto
exercito a mentira de passear
mas passeado sou pelo passeio,
que é o sumo real, a divertir-se
com esta bruma-sonho de sentir-me
e fruir peripécias de passagem?

Eis se delineia
espantosa batalha
entre o ser inventado
e o mundo inventor.
Sou ficção rebelada
contra a mente universa
e tento construir-me
de novo a cada instante, a cada cólica,
na faina de traçar
meu início só meu
e distender um arco de vontade
para cobrir todo o depósito
de circunstantes coisas soberanas.

A guerra sem mercê, indefinida
prossegue,
feita de negação, armas de dúvida,
táticas a se voltarem contra mim,
teima interrogante de saber
se existe o inimigo, se existimos
ou somos todos uma hipótese
de luta
ao sol do dia curto em que lutamos.

Carlos Drummond de Andrade em A paixão medida

25 de out. de 2018

o mais estritamente necessário


Defesa da alegria

Defender a alegria como uma trincheira...
defendê-la do escândalo e da rotina
da miséria e dos miseráveis
das ausências transitórias
e das definitivas
defender a alegria por princípio
defendê-la do pasmo e dos pesadelos
assim dos neutrais e dos neutrões
das infâmias doces
e dos graves diagnósticos
defender a alegria como bandeira
defendê-la do raio e da melancolia
dos ingênuos e também dos canalhas
da retórica e das paragens cardíacas
das endemias e das academias
defender a alegria como um destino
defendê-la do fogo e dos bombeiros
dos suicidas e homicidas
do descanso e do cansaço
e da obrigação de estar alegre
defender a alegria como uma certeza
defendê-la do óxido e da ronha
da famigerada patina do tempo
do relento e do oportunismo
ou dos proxenetas do riso
defender a alegria como um direito
defendê-la de Deus e do Inverno
das maiúsculas e da morte
dos apelidos e dos lamentos
do azar
e também da alegria


Mario Benedetti

13 de out. de 2018

soldado




para Vitor

hoje fez um dia bonito quente azul triste
e ontem meu amigo cortou os pulsos
não sei dizer o quanto dói
a vida violenta
somos pouco generosos
insuficiente o afeto que se sente
impotência frustração
meu amigo inteligente
escreve como poucos
e como socos no mundo questiona, zomba, desconfia
sobretudo de si mesmo
valorizo a sabedoria de quem não se leva a sério
tento imaginar como é
caminhar sobre esse terreno pegajoso
um lodo, o esgoto escorregadio e contaminante
da incerteza o tempo todo corroendo
suponho coisas sobre ele
e me envergonho
meu bairro não é diferente
também eu sei bem pouco onde piso
mas aprendi a encontrar o centro de gravidade
no meu corpo
um equilíbrio sempre provisório
respirar
e a dura aprendizagem de não trair o que se sente
buscamos o destinatário pra cartas, beijos, socos e poemas
um outro pra depositar um pouco do tanto que não cabe (nunca coube)
mantimentos acumulados na despensa
sobras e rabiscos abandonados na gaveta
a lista de afazeres ou possibilidades
palavras de espanto e estímulo
não, ainda não é suficiente
meu amigo quer mais
tem sede e fúria num mundo que só oferece gentileza aos pacíficos e acomodados
ele se arma
soldado
escrever mais
rápido
forte
certeiro

eh

16 de ago. de 2018

Piercing words



para Laura

1
como quem dá forma a dor
brinco
no rosto
um estranho
corpo
o ornamento
me fala de antigas e presentes eus
admiro, higienizo e celebro
o furo
conquistado com alguma dor e uns trocados

para cicatrizar bem
água com sal é o melhor remédio, me explicaram
sigo a orientação disciplinada
três vezes ao dia choro um tanto
para lavar o local adequadamente
mesmo quando as coisas vão bem
ninguém
perguntou a razão dos olhos vermelhos
ou quem não entendeu
a questão
fui eu
isso acontece bastante comigo


2
aos doze anos coloquei no nariz um brinco de pressão
eu achava bonito e divertido, mas meu pai não nem meu irmão
meu pai perguntou quanto eu queria pra parar de usar aquilo,
justo ele que não é dado a chantagens, pelo menos não as monetárias
o outro irmão eu não me lembro o que dizia ou achava
ele também furou o nariz anos depois, com uma agulha em casa
acho que doeu muito e sangrou
no colégio um rapaz mais velho do que eu se aproximou no recreio e perguntou
“menina, tu é revoltada?”


3
hoje eu sou bem mais revoltada mas não tão menina
por isso furei o nariz
de verdade
a lágrima que escorreu quando a agulha chegou ao outro lado me trouxe alívio
que bom finalmente chorar por uma razão justa, digna, palpável

na terceira semana, meu corpo começou a reagir ao estranho corpo
as defesas cansadas quase cedendo ao combate
no rosto ao lado da joia um ponto branco cheio de pus crescia mais a cada dia
adorno nada gracioso

quanto tempo leva até cicatrizar?
era pra ficar bonita
mas agora não
brinco
mais
um problema de imunidade
fraca ou forte sou?
meu corpo aguenta, acolhe, rejeita, resiste
exatamente quando e ao quê?
algumas palavras ou combinações delas tão perfurantes
talvez alcancem o outro lado
não vou me despir dos planos indiana
só minha fantasia
não deixo fechar
o buraco
vai ficar


4
tinha um piercing no meio do caminho
entre o quarto e a rua
o tempo que se leva pra entender
alguns segundos
muito pouco nada sempre muda
o meu corpo teu?
brinco nas orelhas
no nariz
no umbigo
nos mamilos
na língua
e onde mais quiser
furar
que pelo buraco atravessa
a dor
a pergunta te ampara
e o sinal encerra o verso
corpo imune a respostas prontas
tem o tamanho exato 
do que sobra
o infinito te enfeita
meu excesso


5
insatisfeita
insaciável
curiosa
troco o brinco
não mais o ponto e sim a argola
difícil passar a joia até o outro lado
a cartilagem é dura e grossa
a pele é fina e sensível
a mudança fere
e tudo inflama outra vez
vermelho
indica
machucado
tome mais cuidado ao tocar ali
quando o ar entra e sai eu não sinto nada
além de prazer


6
você quer ver o furo que eu fiz?
a paciência que não temos, os ruídos que não ouvimos
quem deixou a janela aberta durante a tempestade?
o corpo todo, de fora pra dentro, luta
pede pausa interrompe e vai
na beirada da beira outra dimensão quase lá
brinca
e volta
cicatrizar leva tempo
o ventre
essa aventura imprevisível
marcamos pra esquecer
a carne viva
inflamação
o umbigo é um oco
já habitamos um outro corpo
lembra?
e carregamos no centro
precioso
vazio


eh


7 de jun. de 2018

uma história mais




“A gente escreve o que ouve, nunca o que houve”
Oswald de Andrade


as pessoas tentam ser poliana e fazer o jogo do contente
agarrando como se não houvesse amanhã
sou cigano
vamos embora
como a gente é carinhoso né
se não der certo a gente pede uma pizza
não some viu
sabe o que é bom? perdoar
estou indo
que saudade
voltei
eu gosto quando tu tá voando
bonito e querido, como a dona
esse jeito que a gente tá levando não vai dar certo
pra tua casa ou pra minha?
indiferença leva ao desprezo
oi
preciso lidar com duas abstinências
o bom é fácil
quebrei a regra senti ciúme
vc tá feliz? eu também
é melhor a gente parar de se ver
eu gosto bastante de vc
eu tava com bastante saudade
par ou ímpar
adoro o seu cheiro
se não fosse assim eu nem vinha
hedonistas anarquistas
fica cada vez melhor
bom dia
a gente se entende bem né
o que eu levo?
como é bom isso
tem amores que são doídos
quer me ver hoje
eu não sou um bom namorado
bom apetite
tu é bem racional 
eu não sou uma pessoa estável 
bom trabalho
são virilhas quentes dançando
deixa eu pesquisar
eu quero que vc seja vc em toda plenitude
o que há de mais baixo, obscuro e vil na humanidade
eu gosto de te ver assim
vc sabe que eu sou meio burro
o que tá fazendo
vamos pra são bernardo
acabei de tomar um daiquiri
como a gente é culto
por quanto tempo vamos ficar nesse silêncio constrangedor
e foram vistos comprando doces
sei como é
gosto do barulho que faz
vem pra cá
metódico demais
não acha que está perdendo teu tempo?
lê pra mim
cada quilômetro andado é um quilômetro mais longe
essa eu não conhecia
vamos embora?
divirta-se
eu quero tudo
é seu caminho
tô com fome 
isso também vai passar
mais cinco minutos

eh


pequenas e incontornáveis invasões


Lygia Pape, caixa de formigas, 1967

[em resposta a pergunta da Ju Pereira]


Tem formigas por tudo aqui na minha casa, são bem pequeninas e desconfio que estão comendo as raízes da planta e também que se quiserem elas podem entrar nas engrenagens do computador e causar estragos. O que eu posso fazer além de solicitar que se vão, que encontrem outro lugar para sua marcha?
Sinto mais do que nunca o desejo de escrever, enquanto minhas mãos se movem aceleradas, o branco da tela se enche de manchinhas pretas pequeninas, insetos. Elas se acumulam e se espalham num ritual louco de reprodução instantânea. Biologia, magia, concepção. Fico esperando aquele relâmpago de luz com o teu nome. As letras o compõem como um código de acesso primordial e secreto, coreografia das formigas, o direito a subir à tona e puxar mais um tanto de ar. Emergir. Ou o inverso? São muitas perguntas, há apenas perguntas, o homem das questões sabe disso porque carrega a interrogação nas costas, formiga levando um mínimo resto imenso, precisa se mover incessantemente, tão rápido que não chega a sentir cansaço, só o vento no rosto e nos cabelos, fugaz.

eh

6 de jun. de 2018

a mulher pública


[em resposta a outra pergunta]

Se a mulher escreve e publica
seus pensamentos, ideias, poemas, romances
e o público bate palmas, uiva, relincha e rejeita em coro
ou faz corações com as duas mãos e outros gestos de congratulação
ou simplesmente se arrepia e se toca no silêncio solitário de seu corpo ou quarto
a única certeza é que
pega
mal
dita
escrita
livro
mulher


se a mulher ocupa um palco púlpito ato rua câmera tela
e exibe a cara-corpo
faz soar no microfone as palavras
no meu ouvido – ai!
públicas
lúbricas
lutas
furiosas
revoltam
mal
ditas
sejam


fazer versos não faz mal
publicar sim
aquela foto indecente na orelha do livro
a estante repleta no fundo
o vídeo da entrevista
não engana
meu
público
púbis
mal
dita
escrita


tomar chá pega bem,
é saudável e elegante
tanto melhor se for de tarde com amigas no recato do lar
tomar chop - cerveja-vinho-vodka-cachaça-whisky-tequila-saquê-conhaque-fernet no público pub
pega mal
dita
línguas más dizem
falam que
escrever no guardanapo
um poema bêbado barco
o número do telefone endereçado a alguém
pega mal
muito mal
dita


dita
dores
abundam
no público espaço
no banheiro toilete wc fb
cagam regras obtusas e podres
enquanto
falo
grande
em alto e bom som
poetisa
não
poeta
sim



eh

despoema

foto Ana Sabiá



"só derrubando furiosamente poderemos erguer algo válido e palpável: a nossa realidade"
Helio Oiticica

Olho para as estrelas enquanto tenho os pés na lama
falavas daquele filme, de tantas premissas, de constelações vizinhas, de gimnospermas
uma nova mesma história outra vez
eu acompanhava, balançava a cabeça
e a gente ria muito daquilo
desconfio acho que ríamos mais do nosso engano
e do desespero compartilhado
ou do amor?
Olhar adiante
de cima para baixo, da direita pra esquerda
seguir o sentido pré-definido
meus olhos desaprenderam
o tempo todo perseguir as pistas
letras falsas
gestos cínicos
em telas e páginas que reluzem na podridão
custa muito acumular as pedras para contenção
e na verdade não se entregar
por inteiro
a sombra cresce sorrateira no silêncio
há algo que se possa desfazer?
Novo lance, de outro ângulo eu vejo
nada nada nada que seja capaz de descrever
mas contamos mil e uma noites
em paisagens estranhas
com uma caneta eu tentei unir os sinais no teu corpo
ligar os pontos
descobrir no desenho que formaria
teu destino
nada nada nada a desvelar aqui ou além
só esse presente agora passa

eh

atravessamentos céu acima terra abaixo

Francesca Woodman

[a partir de uma outra pergunta]

“A duração é um estado em que obstáculos não conseguem esgotar o movimento. Não é uma condição de repouso, pois a mera imobilidade significa na verdade um retrocesso. A duração é o movimento de uma totalidade organizada e completa em si mesma. Esse movimento está sempre se renovando. Ele se realiza segundo leis imutáveis e cada término dá lugar a um novo começo. O objetivo é atingido por um movimento na direção interna: a inspiração, a sístole, a contração. Esse movimento se transforma num novo começo tomando a direção externa: a expiração, a diástole, a expansão.”
I ching

       Era de tarde e eu precisava escolher os poemas que ia dizer... escolher os poemas pra fazer dessa uma noite especial, pra de algum modo fazer aquela noite durar... e eu fazia com muita felicidade minha seleção amorosa... mas enquanto lia versos, lia pedaços de notícias e de posts e frutas fora da geladeira e tantas coisas e minhas mãos inquietas subindo e descendo abas e janelas e as crianças gritando lá fora, enquanto fugiam de um monstro assustador em verdade bem amigável. Era ah aaaahhhh aaaahhh e muitos risos, na minha vizinhança. E os minutos, as horas passando e eu respondendo e-mails e mensagens, o coração apertado porque precisava achar aquele poema, exatamente aquele, não sei bem qual ou onde, mas é um que me toca, marcou minha vida e meu corpo tantas vezes, e eu acredito que pode definir muito e me ajudar a dizer o que eu desejo dizer, é uma coisa grande, grandiosa, ardente, muito embora eu não me lembre de um verso sequer nem de uma palavra... procuro no arquivo do computador, na caixa de papéis dobrados, rabiscados, nenhum daqueles se parece com ele... e então penso que talvez eu tenha que escrever esse negócio... mas eu sou tão absurdamente incapaz de aproximar palavras de modo minimamente interessante... eu queria mesmo emprestar a minha voz, meus olhos, dedos, pulmões e lábios pra esse poema, sabe?! Eu queria ser a porta-voz, a porta-bandeira, a porta-passagem, a travessia que te dá acesso à imensidão, que te leva ao ponto firme e rijo da duração no meio dessa vertigem ininterrupta... talvez pra isso eu precise colocar os pés e as mãos na terra, cavar, plantar, regar com o meu sangue outra e outra e outra vez. Talvez eu devesse aproveitar os desejos, os despejos e usar as palavras pra falar que minha barriga foi cortada. Tinha esse verso no poema? Um poema sobre o ventre e o vazio, não o que falta, mas o que move e impulsiona, o sangue passando pelo corpo todo e descendo terra abaixo... fazendo raízes, rizomas, linhas de força pulsantes, versos-vórtices do poema que procuro, curo.

eh