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23 de mai. de 2015

divididos somos

(para Sophia)

[...]

– Está procurando caranguejos? – disse Medardo -, estou atrás de polvos. – E me mostrou sua presa.
Eram grandes polvos marrons e brancos. Estavam cortados em dois com um golpe de espada, mas continuavam a mover os tentáculos.
- Que se pudesse partir ao meio toda coisa inteira – disse meu tio, de bruços no rochedo, acariciando aquelas metades convulsivas de polvo -, que todos pudessem sair de sua obtusa e ignorante inteireza. Estava inteiro e para mim as coisas eram naturais e confusas, estúpidas como o ar: acreditava ver tudo e só havia a casca. Se você virar a metade de você mesmo, e lhe desejo isso, jovem, há de entender coisas além da inteligência comum dos cérebros inteiros. Terá perdido a metade de você e do mundo, mas a metade que resta será mil vezes mais profunda e preciosa. E você já de querer que tudo seja partido ao meio e talhado segundo sua imagem, pois a beleza, sapiência e justiça existem só no que é composto de pedaços.
- Ah, ah – dizia eu -, que monte de caranguejos aqui! – E fingia interesse apenas por minha caça, para manter-me distante da espada de meu tio.
Não voltei para a margem enquanto ele não se afastou com seus polvos. Mas o eco das palavras dele continuava a me perturbar e não encontrava sossego para essa fúria de dividir tudo ao meio. Para qualquer lado que me virasse, Trelawey, Pedroprego, os huguenotes, os leprosos, todos se encontravam sob o signo do homem partido ao meio, era ele o patrão a quem servíamos e do qual não conseguíamos nos livrar.

Italo Calvino, O visconde partido ao meio, p.51-52.