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28 de dez. de 2020

ou ou

 

Imagem de Raisa Christina



É tudo tão simples,

sim, era tão simples,

é tão evidente

que mal consigo acreditar.

Para isto serve o corpo:

ou me tocas ou não me tocas,

ou me abraças ou me afastas.

O resto é para os loucos.


Patrizia Cavalli 

(Um pouco do meu sangue. Antologia de poesia italiana, edição Contracapa, seleção e tradução de João Coles)


um trator

 

Desenho: Priscilla Menezes

Outra vez o amor terminou


Outra vez o amor terminou, como uma boa safra de laranjas,


Ou como uma boa temporada de escavações, que extraiu das profundezas 

Coisas comovidas que buscavam o esquecimento. 


Outra vez o amor terminou. E como depois de se demolir

Uma casa grande e retirar os escombros, visitamos

O terreno vazio e quadrado e dizemos: como era pequeno 

O lugar onde ficava a casa 

Com tantos andares e tantas pessoas. 


E dos vales distantes chega


O som de um trator solitário,


E do passado distante chega o bater


Do garfo no prato de porcelana, misturando


E batendo gema de ovo com açúcar para o menino, 

E bate e bate. 


Yehuda Amichai


25 de dez. de 2020

espólio

Mulher que diz tchau

Levo comigo um maço vazio e amassado de Republicana e uma revista velha que ficou por aqui. Levo comigo as duas últimas passagens de trem.

Levo comigo um guardanapo de papel com minha cara que você desenhou, da minha boca sai um balãozinho com palavras, as palavras dizem coisas engraçadas.

Também levo comigo uma folha de acácia recolhida na rua, uma outra noite, quando caminhávamos separados pela multidão.

E outra folha, petrificada, branca, com um furinho como uma janela, e a janela estava fechada pela água e eu soprei e vi você e esse foi o dia em que a sorte começou.

Levo comigo o gosto do vinho na boca. (Por todas as coisas boas, dizíamos, todas as coisas cada vez melhores que nos vão acontecer.)

Não levo nem uma única gota de veneno. Levo os beijos de quando você partia (eu nunca estava dormindo, nunca).

E um assombro por tudo isso que nenhuma carta, nenhuma explicação, podem dizer a ninguém o que foi.


Eduardo Galeano

21 de dez. de 2020

praia da solidão

 



portanto por vezes os afogados

voltam à tona de água

pois desejam de novo atirar-se

ainda não esgotaram o desespero

ainda não esperam completamente

ainda temem que nada chegue

não sabem ainda que já ninguém virá

que mesmo  o mergulho foi em vão

que tudo a água lava, só a vida não


Bénédicte Houart


20 de dez. de 2020

além das cordilheiras

 

Cenas de um casamento, Ingmar Bergman (1973)


ADEUS

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastamos tudo menos o silêncio.
Gastamos os olhos com o sal das lágrimas,
gastamos as mãos à força de as apertarmos,
gastamos os relógios e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário, 
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é a verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastamos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
Já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugênio de Andrade

19 de dez. de 2020

nós ao avesso

 


No percurso, te incomodava saber que aquilo que os professores se esforçaram para falar durante a aula já se esvaía na mente dos alunos. E ali, naquele ônibus, olhando para todos eles, você percebia que esta fora sua luta cotidiana, talvez a única que valesse a pena: fazer a sua voz permanecer na cabeça deles o máximo de tempo possível. Entretanto, você tivera a impressão de nunca haver conseguido influenciar ninguém. Você estava com cinquenta e dois anos e tudo que você tinha nas mãos eram os livros, algumas provas e uma vontade doida de beber algo. Você desceu próximo a um boteco que costumava frequentar. Pediu uma cerveja. Em seguida pensou em Elisa. E pensar nela o fazia não prestar atenção no sabor da bebida. Você pensava em Elisa e bebia. Entrava numa espécie de roda-viva. O sabor amargo e a falta de Elisa. Outra cerveja. Em pouco tempo você estava bêbado. Na embriaguez parecia lidar melhor com a perda. A dor é amortecida. Era o que te ajudava a voltar para casa. Alto e flutuante. E depois só tinha tempo para tirar os sapatos antes de deitar na cama. Acordou de ressaca com seu despertador gritando. Estava frio e chuviscava. Ressaca, frio e chuva: a fórmula perfeita para ligar para a escola e mentir que estava doente. Mas não. Você levantou, porque não gostava de faltar. No caminho para a escola sentiu uma espécie de raiva de si mesmo por voltar ao abismo: a falta de Elisa. Mas era assim mesmo. Você já deveria ter aprendido. Quantas decepções afetivas você já tinha passado na vida, você se confortava. Resignou-se e tentou compreender o fim novamente. Regressou ao passado. Analisava as minúcias do relacionamento; as discussões, os silêncios e as mágoas. Não amei certo, você pensava, e se punia. Mas a vida segue porque, mesmo quando se ama errado, ainda temos de viver. O amor não impedia a vida. Continua-se porque os carros não param, homens e mulheres se levantam e  vão trabalhar. Todos os dias. Segue-se, não por bravura ou altivez, mas porque simplesmente não há o que fazer. E não há aí nenhum ensinamento ou lição a aprender. A não ser domar a tristeza e aceitar conviver com ela, você pensava. E, mesmo que Elisa continuasse a vir a seus pensamentos, e nos momentos mais impróprios, você lutava contra eles. Para isso, você precisava concentrar forças nas suas aulas. E talvez essa fosse a sua última lição antes de deixar o magistério: não mais influenciar seus alunos, mas se deixar influenciar por eles. Contagiar-se da ingenuidade deles e perceber com espanto as coisas novamente pela primeira vez. E nas aulas, talvez, superar a rua em que você e Elisa caminhavam, a padaria em que tomavam café, o caixa eletrônico em que pegavam dinheiro, o parque no inverno. Tudo ainda ali dentro de você, ainda cambaleando, você tentando superar numa sala com adolescentes desajustados as sobras de um afeto. Você que um dia pensou que aos cinquenta e dois anos saberia lidar com o fim das coisas. Mas a dor não escolhe idade quando quer doer, você pensava. Na parada, enquanto esperava o ônibus, teve vontade de chorar. Mas você se tornou um homem antigo. E homens antigos não choram em paradas de ônibus. Não por macheza ou para provar sua virilidade, mas porque não fica bem um homem antigo chorar em público, você pensava. Depois da escola, na volta pra casa, mantinha a cabeça baixa, mas ainda assim não chorava. [...] Você sabia que não havia sido um grande professor. Você apenas travou durante anos uma guerra particular, mas cumpriu a tarefa. Não abandonou o barco. E achava que isso já te redimia das aulas ruins que deu. Certa noite você baixou o volume do som, pegou o telefone pensando em ligar para Elisa, mas hesitou. Sempre hesitava. Mas até quando?

Jeferson Tenório, O avesso da pele, p.156-158

9 de dez. de 2020

o mau pedaço

 


Kasi com pássaro, 2018, Júlia Amaral


que nojo me dava

do amor

virando posse, das

pessoas virando cruas, do Pedro não

    entendendo nada com aqueles olhos

    inchados e duros,

seu amor por mim

escorria

virando

Ódio, virando

ímpeto.

[...]

que saudade de quando nada disso tinha

    acontecido

de todos os segundos antes disso ter acontecido. 

[...]

mas para mim era tudo tão

Tarde,

o tempo 

escorria sem

sono das minhas

mãos.


Aline Bei, O peso do pássaro morto, p.54-55

3 de dez. de 2020

( d e s ) p a r ê n t e s e s

Uma espécie de perda 


Usamos a dois: estações do ano, livros e uma música.

As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma cama.

Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados, gastos.

Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos. E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
 idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,

(– o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento) sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.

Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.

Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.


Ingeborg Bachmann