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29 de mai. de 2018

implacável

[a partir da pergunta-convite da ana]


ela quase caiu da escada, disseram. devolvi com um sorriso falso, fraco, em resposta. ninguém sabe que fui eu quem tropeçou e rolou, escada abaixo do nível do mar. um calendário em meu corpo, acompanho a metamorfose nas manchas pretas, roxas, azuis, amarelas.... desenhos uniformes, totais, se diluindo em pontilhados, sombras cada vez mais tênues. debaixo da carne, os ossos. coração de galinha no espeto. quando olhei o primeiro degrau, foi uma vertigem que senti, tremor de terra, vento forte. o desequilíbrio e a queda permanente ensinam: meu umbigo está no centro. agora nós aqui reunidas, um arquipélago, todos os umbiguinhos. se o estômago ronca, canta seu solo que nos envergonha ouvir, teria sido melhor não esquecer das vísceras? ali onde se digere, os restos fermentam, algo se excreve pra lembrar que tanta pompa não nos poupa do antigo fato: além da testa, além da teta, o dedão do pé na beira do abismo dança.

eh

ziguezague

[a partir da pergunta-convite da Ju Ben]

ela falou que certos enganos são necessários. não tive forças para discordar, dizer qualquer coisa seria comprovar o indispensável do equívoco. fui embora quase imediatamente, andei por muitas ruas, o olhar perdido e confuso, não sabia bem como levar a coisa estranha, o engano, a ingenuidade. me apaixonei de novo aos 75 anos, afirma Isabel Allende no jornal. um amigo avisa que respondeu minhas perguntas por e-mail, mas não todas. rio, gargalho, a vida já não me permite a ilusão das respostas. ele escreve que ainda é medo pra isso. medo não, * cedo. o corretor interfere. como sabe? um animal atravessa meu caminho correndo em ziguezague e quem o atropela sou eu. carregamos o acidente no corpo e sinto vergonha. sou violenta e agressiva como o vento forte demais daquela noite, as telhas no chão espatifadas. o pior é que todo mundo vê a casa descoberta mas só quem mora sente a água chovendo dentro, meses depois. e nem é de todo mal, o frio arrepia e lembra que a vida pulsa forte e incontrolável enquanto exige cuidado e proteção. gostei tanto de chegar sozinha no exato instante em que a lua vermelha despontava acima da linha do mar, de ter enfrentado o frio, a dor e certa dose de precaução para assistir suas mudanças de cor durante a subida que, hipnotizada, ainda tento adivinhar os desenhos que marcam a outra face.

eh

26 de mai. de 2018

reparo em mim

trago farpas de cais nos versos
terra firme e náusea
cambaleio
por essas ruas secas

escondo meus mundos
não te conto muito
escorre neon do fundo dos olhos
explode o céu
nossos corpos
nossos fogos

sobra um pouco de mel (sobra pouco mel)
o vento arranca flores do chão
procuro suas pegadas no cimento duro
na luz perdida entre as heras garradas ao muro
pequenos reparos
não muito
daqui eu ouço o rio correndo
daqui de cima
olho o mundo em silhueta
leio de poemas (perco palavras de um poema que não
soube escrever)
que nunca soube escrever
meu muro cheio de cacos
daqui tudo é perigoso

escute o céu, o mar e o chão
ainda escuros (indefiníveis)
brilhando os passos
mudando nomes ruas curvas

Omar Salomão, em Pequenos reparos

10 de mai. de 2018

celebrar os ciclos comigo

eu durmo comigo/ deitada de bruços eu durmo
comigo/ virada pra direita eu durmo comigo/ eu
durmo comigo abraçada comigo/ não há noite tão
longa em que eu não durma comigo/ como um trovador
agarrado ao alaúde eu durmo comigo/ eu durmo
comigo debaixo da noite estrelada/ eu durmo comigo
enquanto os outros fazem aniversário/ eu durmo
comigo às vezes de óculos/ e mesmo no escuro sei que
estou dormindo comigo/ e quem quiser dormir comigo
vai ter que dormir do lado

Angélica Freitas, em Um útero é do tamanho de um punho