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29 de jul. de 2020

sonhos docentes



Outro dia sonhei que estava dando aula. Alguém veio de fora e me chamou na porta pra resolver alguma coisa urgente, eu deixei a sala de aula e entrei numa saga infinita de coisas que não davam certo. Eu fiquei muito ansiosa pensando que precisava voltar, que não podia deixar os alunos sem uma palavra, uma orientação, uma explicação antes que a aula se encerrasse.

Quando acordei entendi que esse é o sonho dessa quarentena, a sensação de fracasso por não conseguir cumprir um acordo estabelecido lá no começo, o medo de não manter o compromisso.

Essa noite sonhei que estava dando aula, comecei a fazer a chamada e não conseguia avançar porque as estudantes me interrompiam o tempo todo, com suas conversas, piadas, perguntas, risadas. Acordada, pensei que esse sonho fala daquilo que eu tenho saudade. Compartilhar não apenas as ideias, os textos, as tarefas, o “conteúdo”, mas as risadas, as piadas, aquela inquietação e dificuldade de permanecer quieta, sentada, aquele olhar de cumplicidade ou de incômodo, o sono... afinal essas são manifestações da vida, e não existe conhecimento sem vida. A gente faz educação juntes, a partir do encontro, dos atritos, da convivência... é assim que a vida se faz em nós também.

Tem sido um desafio e tanto fazer educação não presencial, o paradigma é outro e a convivência quase não existe... embora estejamos compartilhando muitas das dificuldades e das dores dessa condição. Há pequenas alegrias também, como eu imagino que pra alguns possa ser o conforto de “ter aula” na cama, de pijama... um pesadelo recorrente agora tão real.

14 de jul. de 2020

mergulho







Não há imunidade
consideramos números e dados
contemplamos o horizonte do tempo
a partir de nossas janelas
os dias são solares
o outono traz seu frio com amizade suave
os poucos ruídos da rua
convidam e repelem
a indesejada das gentes
brinca
ameaça tocar a campainha
a qualquer momento
baixar a curva
é o mantra social
escapar do invisível e do inominável

mergulho fundo no infinito particular
e muitas vezes desconfio que não haverá saída
que não haverá tempo ou desejo
abandonar esse mundo outra vez
e o delírio do convívio
com a outra a outra a outra a outra de mim
não é o mesmo
de quem tem fome frio falta

nada está sob controle
já dissemos tantas vezes
e agora essa frase ecoa na minha barriga
antes de dormir depois do despertar
sonho com viagens estradas aviões encontros
e vivo dormindo o que não é possível realizar
acordada
ironia do destino
você me chamando
amor acorda
aqui estamos
acorda
a lua cheia nasce do oceano outra vez
sussurra um acalanto
há mares de amplidões inexploradas
nuances na teia da vida
é preciso escutar o som que faz
o ar entrando e saindo dos pulmões
a onda que avança e recua
a dança atemporal
da plenitude e do vazio
silêncio, amor


eh

entrelaçadas




A cantiga da amiga me desperta
e me convida a ensaiar
de novo olhar aquela miragem
sempre outra
tantas e tantas vidas depois

Ouço a música
enquanto penso que todos os meus poemas
são de amor
mesmo o da revolta
não sei se é porque com eles se escreve
a sensação de exposição íntima
do peito que se rasga
da carne à mostra
ou pelas palavras
imagens
que visitam e povoam
os olhos, as palavras, as dores, os movimentos
de um corpo outro
teu

Na escrita há desejo
a relação com as teclas ou a caneta
o ímpeto de expurgar, devorar, desnudar, deixar à mostra
e depois ocultar
endereçar palavras e gestos
sutis
dizer como quem descuidadamente
entrega algo mais
e envolve na trama
delicada, vulgar
contemplo distante
ou apenas suspeito
teu olhar a se mover da esquerda pra direita
de cima para baixo
curioso, voraz
o coração ofegante
intrigado
uma pergunta persegue
- o que quer dizer?
letra lasciva luxúria
ela
quer
esse fogo crepita e estala
você fecha o livro num golpe
o sopro forte alimenta a chama

eh


sonhada sonhante





"De baixo do lençol que te tateia pele fina"
Lula Queiroga
Você me pergunta sobre o sonho
eu não consigo evitar
pensar no inseto que acorda
ou na mulher que desperta no corpo de um inseto
imagino as patinhas finas e curtas se agitando no ar
na mesma velocidade dos pensamentos buscando explicação

um pesadelo
a borboleta e tchaung-tse
sonhada sonhante
as camadas indo vindo
se eu caminho desperto?
escrevo desperta?

buscamos respostas
meu coração bate
o ar entra e sai dos pulmões
agora
um corpo de verdade
dança
fala
chora
cala
escreve
e aí o buraco é mais embaixo

um caminho sonhado
a estrada escura a solidão
o horizonte amplo grande infinito
o desejo me move na direção de tudo que não vejo

o dia inteiro assombrada pelos encontros noturnos
tento desvendar essas visitas
quem eu não sou sempre me chega
mais hora menos hora
pra você também
fechados ou abertos os olhos
esse vazio te encontra?

Eu de mãos dadas com a menina
cinco ou sete anos
um número ímpar
sinto seus dedinhos pequenos e macios abraçando minha mão

Sonhei que escrevia um poema
sem usar as mãos
sem mover muito o corpo
as imagens difusas
se imprimiam na minha pele
pelo lado de dentro
um texto que se toca ao fechar os olhos
uma partitura
sonho ou pesadelo
as ambiguidades dessa relação
a escrita no corpo-mundo
sem forma
então adio, atraso, esqueço e me distraio
começo e não termino
ambiciono projetos
um conjunto de versos acertados
começo, meio e fim
desisto no primeiro lance

A analista me diz
as coisas não precisam acabar
eu ouço que devo
enfrentar meu medo do ridículo
aquele sonho recorrente
chegar na escola de pijamas
de pantufas
a boca sem os dentes
estar seminua no trabalho
é parir no mundo essa cria inacabada
e acreditar que ela pode chegar
a dar alguns passos por si mesma,
a trilhar caminhos imprevistos

O informe
letras trêmulas em linhas tortas
escorrem das minhas mãos
procuro me concentrar no desenho
que formam e esquecer
um pouco do tanto que ocultam

Eu menina
no meio da noite uma imagem no espelho
diante da minha cama
uma mulher
a estranha mais familiar
sua indiferença me amedronta
eu acordo e a imagem continua ali
um espelho móvel
benção ou maldição
a superfície me devolve
sempre ela, ela, ela, ela
em tantas faces
parece indicar a minha ausência
eu pura sombra e reflexo
apenas sonhada
aprisionada do lado de lá
não adianta ser linda, meiga, divertida
o olhar dela não se move
fixo no chão um ponto impreciso
ela parece existir sem meu choro
sem minha fome
sem minha força de crescer crescer crescer

Enfrentar a noite escura
com as sombras que a luz da rua projeta na minha parede infantil
sobreviver aos ruídos da ameaça que se aproxima
e se instala sorrateira debaixo da cama
dentro do guarda roupa
só pra me sentir mais livre, segura e forte ao despertar
um dia novo outra vez

eh 

Afetação



Refundar a existência parece ser o trabalho agora
outras referências
o paideuma dos meus afetos
fêmeas

Estar de volta
o calor e o silêncio acalmando o peito
quase tudo está bem
eu agradeço
enquanto penso em arrancar os pelos
a expressão da nossa loucura rotineira
chegar e partir
aqui jogo minha âncora
ela desce até as profundezas
e promete
segurança na flutuação
Barco? Iceberg? Prancha? Canoa?
O apito do navio anunciando

é preciso ampliar o tamanho das letras para ver palavras grandes
e tentar enxergar o que tem dentro delas
caminhos inusitados
insólitos enredos
e o que tem dentro do coração?
sístole, diástole
teu nome teu olhar e a memória da dor

Vermelho é o traje das que tem o honrado destino
conceber e parir as crias
que não serão suas
mas deles
bendita seja a fruta
quando olho para a cor desse lenço
lembro do que podemos nos tornar
e que os significados construídos
estão sempre ameaçados
são os horrores da sua imaginação, há quem diga

o fio vermelho escorre e anuncia
prepare-se para a dor
ela chega e eu sinto culpa
comi bebi corri e aloprei demais
mas o nome disso talvez seja vida
líquida
ela pulsa em caminhos
bifurcações raízes ambiguidades
e eu ainda não escolhi virar monja
o sabor do risco
transbordar o copo
santo graal
cabernet carmenére malbec shiraz
com toda devoção
o vermelho da vida
entra e sai do coração
pela boca
tem gosto de sangue
tem gosto de amor
náufraga

e quando o dia se finda
o sol tinge o horizonte
rubro lavanda ouro
as nuances do ciclo
extravagância
amanhã tem mais
eu exagero mesmo
é isso que o vermelho me diz
que tem muito e ainda mais
para as que sabem tocar
o gosto de ferro
o cheiro de carne
a morte e a vida
na semente
maçã
você me diz de suculências, apetites, afetos e venenos
enquanto o trabalho ocupa e consome
meus (res)sentimentos agravados com o vento

Na caverna pude ver e ouvir
os veios da terra, o som que faz
plic plic plic plic
amplificado e contínuo por eras
úmida, escura, escorregadia
acolhe a humana presença assustada
meus olhos pingam
estalactite
plic plic plic plic
dedos inquietos e ardentes
marcam aqui o tempo de uma passagem
breve
longa
na alternância da duração
partitura
o corpo canto a terra dança


eh

revoltografia



(Imagem: Blekotraka)

A partir da pergunta da Ibriela

I
as perguntas recebidas são dádivas
ou maldições
como aqueles insetos, zumbindo no ouvido
e dessa vez precisava mesmo alguém enunciar aquilo que mal conseguíamos

a volta é encarar o espelho outra vez
e de novo
velha eu
velho o desejo de quebrar o espelho
essa é minha revolta
extraviar a imagem como quem nega a fixidez
da superfície plana
não ser isso
mais
dividida e compartilhada
uma parte de mim em cada caco
multidão irreconciliável
(já falamos disso aqui)
todos os espelhos da minha casa
micropartículas espalhadas
eus multidão

a revolta dói do estômago
a cada notícia falsa faca punhal adaga
os cortes são muitos
mas não impedem o combate


II
permanecer boquiaberta diante do impensável de todo dia
não as sutis e imprevisíveis riquezas
mas as vilanias de quem exerce o poder
ah conheço vocês pelo cheiro, diz o poeta

a revolta é isso que se contrai em cada membro
do corpo e faz das vísceras minhas inimigas

penso nos pedaços de louça que se garimpa nas cidades fantasmas
nas camadas profundas da terra que engoliu o tempo
resquícios
a vida fértil, proliferante, que já não há mais
só penso em pedaços e fragmentos
a revolta de algum jeito me isola?
porque não consigo, com ela, me unir a vocês?
Então escrevo, penso se essas letras de palavras conhecidas, até previsíveis e banais, poderiam ser esses caquinhos, essas partículas, esse resto... e que talvez assim a revolta fale de sua potência
o contato precário e imprevisto da escrita com a leitura
nossa vida inteira jogada em alguns lances
a mão aberta no teclado estende e alcança
a mão fechada e o punho em riste acompanha gritos e tambores
não estamos sós
e isso já não é mais sobre nós
é sobre o que virá
nossa capacidade de sonhar e resistir
porque revolta há


III
revolta é quando eu vejo o mofo fazendo desenho nas paredes
cicatrizes de um longo inverno úmido na ilha
ao sul
e depois fungos e mínimos insetos surgem e devoram um bom tanto do mofo
rasurando parte dos desenhos

ou revolta é quando a gota de kiboa cai na toalha
fazendo um desenho indelével

ou quando uma fibra de fruta ou carne se aloja no espaço entre os dentes
e eu não consigo tirar
com os contorcionismos da língua
nem com o canto da unha

mas nada disso é ainda a revolta
desastres do cotidiano
grafia dos dias
e a maior inaptidão ao desenho

o incêndio no museu
as deformas
a extinção dos ministérios
o projeto de derrocada devastação
a ameaça constante
a censura auto-imposta
a terra arrasada que eles desenham
no nosso corpo
isso sim revolta
enquanto penso em comida, escrevo poema, cuido do gato, corrijo textos
como se atravessam esses dois planos na minha carne que não é a mais barata do mercado, eu sei, a minha existência classe média hétero cis branca envergonhada
não quero aplauso nem confete
mas construir algo desse lugar inevitável
minha história é só mais uma
o que eu tenho pra contar

e eu interrompo tudo
a escrita do poema pra espiar na janela do inferno
escada abaixo é isso
o tombo no abismo
mas eu já sabia sim
só não sabia que quem se levanta é outra pessoa
mulher que anda lento e engraçado
não acho o fio da meada
o passo da dança descompassada
mas de algum modo presente
vagarosa e nítida
assumo quem estou

IV
a revolta me escapa
tento recuperar aquela sensação
a carne em frangalhos
e xícaras e talvez também pratos jogados com força contra aquele muro

meu amigo falaria que isso é autoficção? Autofricção?
massagem no ego e outras perversidades sórdidas talvez
um caminho para os holofotes
queimados de um inferninho qualquer

tem quem diga que lugar de poema é no banheiro
provavelmente também esteja certo
na vida privada
e outra vez
a revolta me escapa

penso em formar grupo, coletivo, casa, casal, cartel
qualquer coisa de força compartilhada
ler e discutir os textos a vida inteira já me moveu por aí
contatos e contágios
o afeto do meu peito juvenil
enquanto roubo as palavras na sequência
fica feio
ou fica bom?
lembra nome de picolé

o gelado me revolta
palavras gélidas, silêncios perversos de quem trama
parece que não era pra ser assim o texto
tão cru, tão literal, tão besta


V
é preciso também quebrar as telas
não cultivar likes
não fornecer dados
embaralhar o perfil
a construção da identidade aqui foi algo que aprendemos com o tempo de uso dos dispositivos
ninguém sabia tirar selfie tão bem no começo
era uma arte construir um bom perfil, as imagens exuberantes correspondendo exatamente à ideia que queremos dar do que somos, sentimos, pensamos
aquela luz, aquela roupa, o batom, mas principalmente o ângulo certo
e agora queremos desconstruir padrões e embaralhar o algoritmo
o que as pessoas andam dizendo me define porque sou a favor ou sou contra
ou sou indiferente também

existam aí bem distantes do meu quadrado retângulo santa tela de jesus maria
eu espio meus inimigos porque ser contra me define
mas cansa jogar esse combate inócuo
a revolta encenada é paralisante
já nos levou às ruas também
corpo a corpo
olho no olho
e o sol na cabeça
andamos juntas, eu sei e isso me conforta
tua companhia na revolta me sinaliza o caminho

abandono os pudores pouco a pouco
conforme sobe a barra da camisa
te
quero
aqui
sim

e todas as meses a gente cultiva
um corpo lúteo
só não quando está prenha
falamos em cacos
em metas-segredo a serem cumpridas
aos 35, esse número esquisito
mas falamos também no descaso público
e todas essas coisas se misturam
no meu corpo
na nossa conversa
são coisas urgentes
a possibilidade de pensar a vida
de viver a vida
de gozar a vida
e de questionar essa vida quadrada dos homens de bem
o etnocídio nosso de cada dia
me revolta

VI
salgar o pensamento é técnica
não resfria a cabeça
talvez os pés
amacia os ligamentos que precisam se reconstruir
converso com todas as células dizendo “ei, eu acredito em vocês”
e mando cartas com meu coração inteiro dentro
escancaro o peito
escancaro os dentes
sem tirar a blusa, dessa vez
e você sabe que assim é bem mais sério

as coisas ficam sérias
eu me lembro da jornalista que foi atingida no olho
e daquele que foi atingido por um rojão
preciso relembrar essa história, pesquisar
foi quando eles mudaram a narrativa
foi bem quando eles cooptaram a potência informe daquilo que era muitas coisas
pra fazer delas muitas uma única coisa só
um erro

a gente não sabia para onde estava indo
mas a gente, alguns de nós, já sabíamos onde queríamos chegar
dizer não foi importante
mas roubaram nossas palavras
com patos e panelas
eu ainda quero livre passe

uma das mulheres presas e perseguidas tinha o meu nome
terrorista, acusaram
é bom saber a quem odiar, demonizar, denunciar, caluniar, violentar, descartar
eu li uma entrevista depois e ela disse que tinha crises de pânico

quando a gente escreve demais tipo vômito depois não sabe por onde começar a limpar a sujeira
mas vem tudo como num jorro
das entranhas
isso é revolta
revoluções excretam o imprestável
o intragável
pelo cheiro e pelo seu amor ao dinheiro
fora de mim fica melhor
esse asco eu revolto
a revolta é uma devolução
penso nisso de volver e revolver a terra
fazer do lixo adubo para a vida
semear e ver germinar
e depois comer o que a terra dá

e penso nas linhas do arado
nos sulcos da terra
e nas linhas e vincos que surgem no meu corpo
a sobrancelha crispada, o cenho cerrado
isso é a revolta
o tempo que passa e marca
não há imunidade
a carne que armazena as memórias da dor e da violência
se nutre no amor que ainda há
e volta
isso sim
um cultivo dedicado
minucioso
é tudo o que nos resta aprender
cultivar o alimento
esperar
saber a hora de colher
celebrar o preparo e a nutrição


eh