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14 de jul. de 2020

revoltografia



(Imagem: Blekotraka)

A partir da pergunta da Ibriela

I
as perguntas recebidas são dádivas
ou maldições
como aqueles insetos, zumbindo no ouvido
e dessa vez precisava mesmo alguém enunciar aquilo que mal conseguíamos

a volta é encarar o espelho outra vez
e de novo
velha eu
velho o desejo de quebrar o espelho
essa é minha revolta
extraviar a imagem como quem nega a fixidez
da superfície plana
não ser isso
mais
dividida e compartilhada
uma parte de mim em cada caco
multidão irreconciliável
(já falamos disso aqui)
todos os espelhos da minha casa
micropartículas espalhadas
eus multidão

a revolta dói do estômago
a cada notícia falsa faca punhal adaga
os cortes são muitos
mas não impedem o combate


II
permanecer boquiaberta diante do impensável de todo dia
não as sutis e imprevisíveis riquezas
mas as vilanias de quem exerce o poder
ah conheço vocês pelo cheiro, diz o poeta

a revolta é isso que se contrai em cada membro
do corpo e faz das vísceras minhas inimigas

penso nos pedaços de louça que se garimpa nas cidades fantasmas
nas camadas profundas da terra que engoliu o tempo
resquícios
a vida fértil, proliferante, que já não há mais
só penso em pedaços e fragmentos
a revolta de algum jeito me isola?
porque não consigo, com ela, me unir a vocês?
Então escrevo, penso se essas letras de palavras conhecidas, até previsíveis e banais, poderiam ser esses caquinhos, essas partículas, esse resto... e que talvez assim a revolta fale de sua potência
o contato precário e imprevisto da escrita com a leitura
nossa vida inteira jogada em alguns lances
a mão aberta no teclado estende e alcança
a mão fechada e o punho em riste acompanha gritos e tambores
não estamos sós
e isso já não é mais sobre nós
é sobre o que virá
nossa capacidade de sonhar e resistir
porque revolta há


III
revolta é quando eu vejo o mofo fazendo desenho nas paredes
cicatrizes de um longo inverno úmido na ilha
ao sul
e depois fungos e mínimos insetos surgem e devoram um bom tanto do mofo
rasurando parte dos desenhos

ou revolta é quando a gota de kiboa cai na toalha
fazendo um desenho indelével

ou quando uma fibra de fruta ou carne se aloja no espaço entre os dentes
e eu não consigo tirar
com os contorcionismos da língua
nem com o canto da unha

mas nada disso é ainda a revolta
desastres do cotidiano
grafia dos dias
e a maior inaptidão ao desenho

o incêndio no museu
as deformas
a extinção dos ministérios
o projeto de derrocada devastação
a ameaça constante
a censura auto-imposta
a terra arrasada que eles desenham
no nosso corpo
isso sim revolta
enquanto penso em comida, escrevo poema, cuido do gato, corrijo textos
como se atravessam esses dois planos na minha carne que não é a mais barata do mercado, eu sei, a minha existência classe média hétero cis branca envergonhada
não quero aplauso nem confete
mas construir algo desse lugar inevitável
minha história é só mais uma
o que eu tenho pra contar

e eu interrompo tudo
a escrita do poema pra espiar na janela do inferno
escada abaixo é isso
o tombo no abismo
mas eu já sabia sim
só não sabia que quem se levanta é outra pessoa
mulher que anda lento e engraçado
não acho o fio da meada
o passo da dança descompassada
mas de algum modo presente
vagarosa e nítida
assumo quem estou

IV
a revolta me escapa
tento recuperar aquela sensação
a carne em frangalhos
e xícaras e talvez também pratos jogados com força contra aquele muro

meu amigo falaria que isso é autoficção? Autofricção?
massagem no ego e outras perversidades sórdidas talvez
um caminho para os holofotes
queimados de um inferninho qualquer

tem quem diga que lugar de poema é no banheiro
provavelmente também esteja certo
na vida privada
e outra vez
a revolta me escapa

penso em formar grupo, coletivo, casa, casal, cartel
qualquer coisa de força compartilhada
ler e discutir os textos a vida inteira já me moveu por aí
contatos e contágios
o afeto do meu peito juvenil
enquanto roubo as palavras na sequência
fica feio
ou fica bom?
lembra nome de picolé

o gelado me revolta
palavras gélidas, silêncios perversos de quem trama
parece que não era pra ser assim o texto
tão cru, tão literal, tão besta


V
é preciso também quebrar as telas
não cultivar likes
não fornecer dados
embaralhar o perfil
a construção da identidade aqui foi algo que aprendemos com o tempo de uso dos dispositivos
ninguém sabia tirar selfie tão bem no começo
era uma arte construir um bom perfil, as imagens exuberantes correspondendo exatamente à ideia que queremos dar do que somos, sentimos, pensamos
aquela luz, aquela roupa, o batom, mas principalmente o ângulo certo
e agora queremos desconstruir padrões e embaralhar o algoritmo
o que as pessoas andam dizendo me define porque sou a favor ou sou contra
ou sou indiferente também

existam aí bem distantes do meu quadrado retângulo santa tela de jesus maria
eu espio meus inimigos porque ser contra me define
mas cansa jogar esse combate inócuo
a revolta encenada é paralisante
já nos levou às ruas também
corpo a corpo
olho no olho
e o sol na cabeça
andamos juntas, eu sei e isso me conforta
tua companhia na revolta me sinaliza o caminho

abandono os pudores pouco a pouco
conforme sobe a barra da camisa
te
quero
aqui
sim

e todas as meses a gente cultiva
um corpo lúteo
só não quando está prenha
falamos em cacos
em metas-segredo a serem cumpridas
aos 35, esse número esquisito
mas falamos também no descaso público
e todas essas coisas se misturam
no meu corpo
na nossa conversa
são coisas urgentes
a possibilidade de pensar a vida
de viver a vida
de gozar a vida
e de questionar essa vida quadrada dos homens de bem
o etnocídio nosso de cada dia
me revolta

VI
salgar o pensamento é técnica
não resfria a cabeça
talvez os pés
amacia os ligamentos que precisam se reconstruir
converso com todas as células dizendo “ei, eu acredito em vocês”
e mando cartas com meu coração inteiro dentro
escancaro o peito
escancaro os dentes
sem tirar a blusa, dessa vez
e você sabe que assim é bem mais sério

as coisas ficam sérias
eu me lembro da jornalista que foi atingida no olho
e daquele que foi atingido por um rojão
preciso relembrar essa história, pesquisar
foi quando eles mudaram a narrativa
foi bem quando eles cooptaram a potência informe daquilo que era muitas coisas
pra fazer delas muitas uma única coisa só
um erro

a gente não sabia para onde estava indo
mas a gente, alguns de nós, já sabíamos onde queríamos chegar
dizer não foi importante
mas roubaram nossas palavras
com patos e panelas
eu ainda quero livre passe

uma das mulheres presas e perseguidas tinha o meu nome
terrorista, acusaram
é bom saber a quem odiar, demonizar, denunciar, caluniar, violentar, descartar
eu li uma entrevista depois e ela disse que tinha crises de pânico

quando a gente escreve demais tipo vômito depois não sabe por onde começar a limpar a sujeira
mas vem tudo como num jorro
das entranhas
isso é revolta
revoluções excretam o imprestável
o intragável
pelo cheiro e pelo seu amor ao dinheiro
fora de mim fica melhor
esse asco eu revolto
a revolta é uma devolução
penso nisso de volver e revolver a terra
fazer do lixo adubo para a vida
semear e ver germinar
e depois comer o que a terra dá

e penso nas linhas do arado
nos sulcos da terra
e nas linhas e vincos que surgem no meu corpo
a sobrancelha crispada, o cenho cerrado
isso é a revolta
o tempo que passa e marca
não há imunidade
a carne que armazena as memórias da dor e da violência
se nutre no amor que ainda há
e volta
isso sim
um cultivo dedicado
minucioso
é tudo o que nos resta aprender
cultivar o alimento
esperar
saber a hora de colher
celebrar o preparo e a nutrição


eh

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