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19 de mai. de 2020

terrena






Para ler acompanhada de "Cajueiro" do Márcio Faraco



                    Desde cedo hoje tem dois homens limpando o terreno que faz fundos com a minha casa. Eu estranho, o mato não está tão grande assim para eles roçarem, pelo menos não tão alto quanto já esteve. É outono e o mato não cresce mais tanto… meu coração acelera. Será que uma obra vai iniciar ali? Será que vão cortar as duas árvores que enfeitam a janela do meu quarto, minhas companheiras de despertar? Eu sei que isso um dia vai acontecer, e tento encarar essa realidade. Um dia terei vizinhos humanos que me farão companhia a partir de sua casa de tijolo e cimento. É um destino certeiro, não há como evitar. Mas eu só peço às deusas, com todas as minhas células, que isso demore um pouco mais.
            Eu me lembro de outras alterações no espaço que já vivi. Quando eu era criança, nossa casa ficava de frente para um pasto, grama verde desde o outro lado da rua até o fim do horizonte onde meus olhos alcançavam, com um arvoredo no meio. O mundo era grande e aquele verde, infinito. Não esqueço da sensação: eu, brincando no balanço que tinha na garagem e olhando pra imensidão que aos meus olhos infantis parecia ser outro país de tão distante… mas um dia construíram um muro. Cinza. Um metro de cinza. Eu achei horrível e chorei. Mas nos dias seguintes esse muro só fez subir, subir, até atingir uns dois metros e meio ou três. Meu infinito agora era esse: um paredão cinza. Imenso, intransponível. Eu não lembro que idade eu tinha quando isso aconteceu, provavelmente já não era tão criança. Mas eu senti como se algo meu fosse roubado, a beleza da minha casa estava um pouco naquela vizinhança verde, que arejava os olhos e que convidava à imaginação, que aguçava meus desejos de mundo, de ir além…
            Outra vez, já adulta, eu morava numa rua sem saída. E nos fundos da minha casa tinha um terreno baldio que servia de comunicação com a rua ao lado. Nessa rua moravam amigos, e nós, nossos cachorros e gatos vivíamos circulando por ali, a pé ou de bicicleta, frequentando as duas ruas. Um dia o dono do terreno veio e instalou uma cerca de arame farpado. Não era para cercar o terreno todo, era só pra bloquear a passagem mesmo. De novo eu senti que algo me foi roubado, que a minha existência e meus movimentos no mundo eram diminuídos por aquela cerca. Eu não era dona do terreno, não paguei um tostão por ele, morava de aluguel na casa da frente, eu não era dona de nada… mas não se trata desse tipo de propriedade, desse tipo de posse. É sobre um convívio sutil que estabelecemos com outros seres no espaço compartilhado, a gente toma posse do espaço ao se relacionar com ele. Os movimentos e as relações são impactadas com as transformações da paisagem, a imaginação se encolhe ou se agiganta com ela… há uma poética no habitar e no se mover pelo espaço, não é preciso ler Bachelard para constatar isso, mas dançar ajuda bastante, sempre. E essas experiências falam também sobre a necessidade de vazio, de espaço não ocupado, pelo menos não ocupado por obras humanas... penso o quanto o vazio no espaço favorece uma ocupação da ordem da imaginação e do pensamento, que pode se desenvolver livre, como os movimentos do corpo que circula no espaço não determinado pelos usos funcionais. É no vazio que a gente encontra o imprevisto do mundo e de nós mesmas.
            Há um tempo atrás eu tentava discutir essas questões da configuração do espaço urbano com estudantes e perceber como isso se relaciona com a literatura. Não sei se fui muito feliz e se tive resultado no esforço - e no prazer - de tentar aproximar João do Rio, um documentário sobre as desapropriações ocorridas nas obras para Copa em 2014, e uma discussão sobre a formação das metrópoles no século XX. Mas continuo achando que precisamos compreender melhor o quanto nossa maneira de existir e de viver nosso breve tempo de existência nesse planeta está intimamente ligada ao espaço que ocupamos e às relações que ele nos permite ou proíbe estabelecer.
            Ter no quarto uma janela que deixa ver o azul do céu e o verde de duas árvores é uma alegria sem tamanho, faz mais fácil meu acordar e levantar da cama nesses dias tão obscuros. E é um luxo, eu sei, que fala também da profunda desigualdade nos modos de habitar esse mundo que deveria ser de todes. Enquanto eu tento me concentrar no trabalho e em cumprir uma tarefa de cada vez, ouço eles trabalharem aqui ao lado, coração acelera, e eu penso “não ainda, adiem um pouco mais”. E fico me perguntando se a vida é essa convivência com as transformações do mundo que estão alheias ao nosso desejo e controle, mas que nos atravessam e marcam de forma profunda. Então me lembro da estratégia de “adiar o fim do mundo”, tão intensamente apresentado pelo Ailton Krenak no seu livrinho imenso “Ideias para adiar o fim do mundo”… como a gente faz esse mundo durar um pouco mais? Contando uma história, e depois outra, e outra, e outra…

eh

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