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15 de mai. de 2020

ternidade


            O que  pensar sobre as duas faces de Deus, o Deus Ovulando do Novo Testamento, compreensivo e amoroso, e o Deus TPM do Antigo Testamento, vingativo e irado? Como conciliar os dois dentro do meu corpo?
            Para tentar entender meus humores: minhas duas semanas de infelicidade – a TPM, a fase lútea. Depois, alguns dias de sangramento. Depois, uma semana de renovação leve – a fase folicular, quando o meu corpo está se preparando para uma nova vida, as ideias surgem facilmente. Depois, alguns dias de ovulação – os dias de felicidade efervescente, quando o meu corpo mais quer trepar, e nada na minha vida parece errado.
            Talvez se eu puder prever esse ciclo, eu não precise levar meus humores de forma tão pessoal, ou fazer contorcionismos tão elaborados para escapar deles, mas vê-los como eles são: parte da natureza, como as nuvens são parte do céu. Talvez meus humores sejam uma prova de como um ser humano é por uma parte do tempo, ou como ele é preso ao tempo, ou é o tempo. O corpo feminino, em particular, expressa o tempo e se aproxima dele. Quando o sangue sai, outro mês passou.
(p.119-120)


Para me superar – usar o meu cérebro, sendo implacável – e me arrancar dessa minha nuvem, em vez de chafurdar nela como alguém disposto a moldar sua moralidade de tal forma que seu propósito mais elevado seja garantir uma vida boa para seu filho – com todas as mentiras que o corpo conta para a mente, e todas as peças que ele prega. Garantir que o corpo não pregue mais nenhuma peça, e que eu não diga nada que não seja verdade. Para me transformar nisso, terei que trabalhar mais arduamente, suportar e infligir dor – não me torturara de forma masoquista ou remoer meus fracassos ou ruminar tristemente o futuro que talvez nunca venha, mas impor o futuro que mais desejo. Precisarei me livrar da minha hesitação feminina, nascida da cortesia; me livrar da minha insegurança, que custa tanto tempo; trabalhar duro, pensar mais – toda a violência que terei que cometer contra minha própria suavidade, que sempre me deu tanto conforto! Estremeço ao pensar em quanto me deixei mergulhar nesse sono tão profundo, como uma princesa de conto de fadas, desperdiçando a vida com sonhos. E o sono continuará se eu não despertar, me sacudir e não mentir para ninguém nunca mais. E terei que me tornar um dos retos, um dos inabaláveis, que sofrem as consequências de tudo que dizem ou fazem. Essa névoa sonolenta que é a minha feminilidade, que muitas vezes ameaçou me afogar – precisa ser evitada, pois ela carrega muito poder. Ela me leva a me perder na criação de filhos, abrindo mão de tantas coisas – me incitando com aquelas alegrias simples e aquelas pequenas conquistas privadas.
            E se eu me dedicar a ser uma mulher má e não procriar – me dedicar ao fracasso biológico? Para onde vai essa esfera da privacidade? Apenas para o fracasso. Só estamos totalmente sozinhos com nossos fracassos. Só quem busca o fracasso pode ser verdadeiramente livre.
            Os fracassados talvez sejam a vanguarda da modernidade.
(p.124-125)



            Este é um livro profilático. Este livro é a fronteira que estou erguendo entre mim mesma e a realidade de um filho. Talvez o que eu esteja tentando fazer, ao escrever isso, seja construir um bote que me levará até certo ponto por certo tempo, até que as minhas perguntas não possam mais ser feitas. Este livro é um bote salva-vidas para me levar até lá. Por mim, isso é tudo que ele precisa ser – não um grande transatlântico, só uma balsa. Ele pode se despedaçar completamente depois que eu desembarcar na outra margem.
(p.211)

           

  Agora a minha menstruação está ficando irregular. Até um ano atrás, ela vinha a cada vinte e oito dias. Agora ela pode variar dois ou três dias. Ver essa queda na minha capacidade reprodutiva, entre outras coisas, me entristece. O tempo está acabando.
            O tempo está sempre se esgotando para as mulheres. Os homens parecem viver em um universo sem tempo. Na dimensão dos homens, não há tempo – só espaço. Imagine viver no universo do espaço, não do tempo! Você põe o seu pau em espaços, e quanto maior o seu pau, mais aconchegante é o espaço. Se o seu pau é muito grande, então o espaço – e a vida – deve ser realmente aconchegante. Imagine ter um pau muito pequeno – como o universo deve ser vasto e insondável para o homem de pau pequeno! Mas se o seu pau for do tamanho da maioria das coisas que você encontra, nada pode ser muito ameaçador. Para as mulheres, o problema é diferente. Uma garota de catorze anos tem tanto tempo para ser estuprada e ter bebês que é como se ela fosse o cúmulo de Midas. A vida de uma mulher dura mais ou menos trinta anos. Parece que, durante esses trinta anos – dos catorze até os quarenta e quatro – tudo precisa ser feito. Ela precisa achar um homem, fazer bebês, começar e impulsionar a sua carreira, evitar doenças e juntar dinheiro o bastante, em uma conta separada, para que seu marido não possa detonar suas economias. Trinta anos não é tempo suficiente para viver uma vida toda! Não é tempo suficiente para fazer tudo. Se eu fizer apenas uma coisa com o meu tempo, certamente essa coisa depois será o meu martírio. Um dia eu com certeza vou pensar Por que caralho você desperdiçou tantos anos colocando vírgulas nisso? Eu não conseguirei entender como pude ignorar a forma como o tempo age sobre a vida de uma mulher; como ele é a essência do universo das mulheres. Todas as coisas que deixei de fazer porque me recusei a acreditar que eu era, primeiro e acima de tudo, uma fêmea.
            Vocês, mulheres que querem viver no universo do espaço, e não do tempo – vocês vão ver só o que o universo tem para dar. Vou mesmo? Sim. Olhe ao seu redor. Mas algumas mulheres são felizes! Mas algumas não são. Como posso saber o que eu serei? Você não tem como saber até ser tarde demais.
(p.212-213)


 Sheila Heti em Maternidade


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