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14 de jul. de 2020

sonhada sonhante





"De baixo do lençol que te tateia pele fina"
Lula Queiroga
Você me pergunta sobre o sonho
eu não consigo evitar
pensar no inseto que acorda
ou na mulher que desperta no corpo de um inseto
imagino as patinhas finas e curtas se agitando no ar
na mesma velocidade dos pensamentos buscando explicação

um pesadelo
a borboleta e tchaung-tse
sonhada sonhante
as camadas indo vindo
se eu caminho desperto?
escrevo desperta?

buscamos respostas
meu coração bate
o ar entra e sai dos pulmões
agora
um corpo de verdade
dança
fala
chora
cala
escreve
e aí o buraco é mais embaixo

um caminho sonhado
a estrada escura a solidão
o horizonte amplo grande infinito
o desejo me move na direção de tudo que não vejo

o dia inteiro assombrada pelos encontros noturnos
tento desvendar essas visitas
quem eu não sou sempre me chega
mais hora menos hora
pra você também
fechados ou abertos os olhos
esse vazio te encontra?

Eu de mãos dadas com a menina
cinco ou sete anos
um número ímpar
sinto seus dedinhos pequenos e macios abraçando minha mão

Sonhei que escrevia um poema
sem usar as mãos
sem mover muito o corpo
as imagens difusas
se imprimiam na minha pele
pelo lado de dentro
um texto que se toca ao fechar os olhos
uma partitura
sonho ou pesadelo
as ambiguidades dessa relação
a escrita no corpo-mundo
sem forma
então adio, atraso, esqueço e me distraio
começo e não termino
ambiciono projetos
um conjunto de versos acertados
começo, meio e fim
desisto no primeiro lance

A analista me diz
as coisas não precisam acabar
eu ouço que devo
enfrentar meu medo do ridículo
aquele sonho recorrente
chegar na escola de pijamas
de pantufas
a boca sem os dentes
estar seminua no trabalho
é parir no mundo essa cria inacabada
e acreditar que ela pode chegar
a dar alguns passos por si mesma,
a trilhar caminhos imprevistos

O informe
letras trêmulas em linhas tortas
escorrem das minhas mãos
procuro me concentrar no desenho
que formam e esquecer
um pouco do tanto que ocultam

Eu menina
no meio da noite uma imagem no espelho
diante da minha cama
uma mulher
a estranha mais familiar
sua indiferença me amedronta
eu acordo e a imagem continua ali
um espelho móvel
benção ou maldição
a superfície me devolve
sempre ela, ela, ela, ela
em tantas faces
parece indicar a minha ausência
eu pura sombra e reflexo
apenas sonhada
aprisionada do lado de lá
não adianta ser linda, meiga, divertida
o olhar dela não se move
fixo no chão um ponto impreciso
ela parece existir sem meu choro
sem minha fome
sem minha força de crescer crescer crescer

Enfrentar a noite escura
com as sombras que a luz da rua projeta na minha parede infantil
sobreviver aos ruídos da ameaça que se aproxima
e se instala sorrateira debaixo da cama
dentro do guarda roupa
só pra me sentir mais livre, segura e forte ao despertar
um dia novo outra vez

eh 

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