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6 de jun. de 2018

atravessamentos céu acima terra abaixo

Francesca Woodman

[a partir de uma outra pergunta]

“A duração é um estado em que obstáculos não conseguem esgotar o movimento. Não é uma condição de repouso, pois a mera imobilidade significa na verdade um retrocesso. A duração é o movimento de uma totalidade organizada e completa em si mesma. Esse movimento está sempre se renovando. Ele se realiza segundo leis imutáveis e cada término dá lugar a um novo começo. O objetivo é atingido por um movimento na direção interna: a inspiração, a sístole, a contração. Esse movimento se transforma num novo começo tomando a direção externa: a expiração, a diástole, a expansão.”
I ching

       Era de tarde e eu precisava escolher os poemas que ia dizer... escolher os poemas pra fazer dessa uma noite especial, pra de algum modo fazer aquela noite durar... e eu fazia com muita felicidade minha seleção amorosa... mas enquanto lia versos, lia pedaços de notícias e de posts e frutas fora da geladeira e tantas coisas e minhas mãos inquietas subindo e descendo abas e janelas e as crianças gritando lá fora, enquanto fugiam de um monstro assustador em verdade bem amigável. Era ah aaaahhhh aaaahhh e muitos risos, na minha vizinhança. E os minutos, as horas passando e eu respondendo e-mails e mensagens, o coração apertado porque precisava achar aquele poema, exatamente aquele, não sei bem qual ou onde, mas é um que me toca, marcou minha vida e meu corpo tantas vezes, e eu acredito que pode definir muito e me ajudar a dizer o que eu desejo dizer, é uma coisa grande, grandiosa, ardente, muito embora eu não me lembre de um verso sequer nem de uma palavra... procuro no arquivo do computador, na caixa de papéis dobrados, rabiscados, nenhum daqueles se parece com ele... e então penso que talvez eu tenha que escrever esse negócio... mas eu sou tão absurdamente incapaz de aproximar palavras de modo minimamente interessante... eu queria mesmo emprestar a minha voz, meus olhos, dedos, pulmões e lábios pra esse poema, sabe?! Eu queria ser a porta-voz, a porta-bandeira, a porta-passagem, a travessia que te dá acesso à imensidão, que te leva ao ponto firme e rijo da duração no meio dessa vertigem ininterrupta... talvez pra isso eu precise colocar os pés e as mãos na terra, cavar, plantar, regar com o meu sangue outra e outra e outra vez. Talvez eu devesse aproveitar os desejos, os despejos e usar as palavras pra falar que minha barriga foi cortada. Tinha esse verso no poema? Um poema sobre o ventre e o vazio, não o que falta, mas o que move e impulsiona, o sangue passando pelo corpo todo e descendo terra abaixo... fazendo raízes, rizomas, linhas de força pulsantes, versos-vórtices do poema que procuro, curo.

eh

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