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18 de set. de 2009

dois quintos


A deseducação dos cinco sentidos

Paladar

            Minha mulher briga comigo por eu comer rápido, fazendo feio quando temos visita. E nunca terei coragem de explicar o porquê disso.
            Ela se irrita por eu não me preocupar com o cardápio e não ter preferência por bebidas. Comer é, para mim, uma necessidade. Mais nada.
            Suas manias gastronômicas me são indiferentes, sento à mesa com pressa, geralmente deixo o computador ligado no escritório e, mal encho o prato – coloco sempre uma única vez, para não perder tempo -, me atiro com voracidade sobre aquele monte de vitaminas e calorias que não me excita nem me alegra. Jamais toco nas sobremesas, nem bebo sucos ou refrigerantes. Gosto de água, tomada depois da refeição. Encho a boca, movimento o conteúdo entre os dentes, e engulo. Viro em seguida o restante e, esteja quem estiver à mesa, peço licença para voltar ao escritório. Pode parecer gulodice ou mania de trabalhar, mas é apenas defeito de formação.
            Na infância de menino de rua, antes de ser adotado, eu comia o que encontrava pela frente. Freguês cativo das latas de lixo, engolia rapidamente, para não correr o risco de ser roubado pelos outros, tudo que tivesse qualquer parentesco com comida. Engolia sem mastigar. Foi assim que me mantive vivo, educando minha boca para ignorar o sabor forte das coisas estragadas.
            Não culpo minha mulher por censurar este meu costume. Ela não sabe nada de meu passado e sempre teve uma vida decente. Como dizer a ela que mesmo seus pratos mais requintados me trazem à lembrança a lavagem servida aos porcos?


Tato

            De tanto trabalhar no serviço pesado, minhas mãos viraram dois cascos. Não consigo mais pegar coisas pequenas e delicadas. Elas perderam as habilidades suaves, embora eu possa segurar brasas vivas. É impossível, no entanto, catar uma agulha caída no chão. E quando toco em tecido fino, ele se gruda em meus calos.
            Isso me impede de soletrar a Palavra de Deus, porque toda vez que tento folhear a bíblia, os dedos machucam o papel fino e não consigo virar a página. A mão do homem não foi feita apenas para aplainar o cabo das ferramentas.
            Às vezes saio a noite em busca de companhia. Levo alguma mulher para hotéis de programa. Ela arranca a roupa, apago a luz e tento entender seu corpo. Minhas mãos não sentem a pele e as curvas. Passam cegas sobre os contornos. É como uma lixa alisando madeira. Se tento ler os seios, apenas percebo uma saliência sem forma que não me excita. Geralmente me alivio ligeiro.
            Em verdade, a vida me tirou as mãos e no lugar deixou dois instrumentos de trabalho que desconhecem o alfabeto do tato.

Miguel Sanches Neto

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