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19 de out. de 2015

o tédio e os primeiros passos

Ela estava mais leve. Nunca imaginara uma coisa dessas. Ia andando pelas ruas, ao sair da faculdade de direito, e todo mundo reclamava, fazia calor, chovia, sucediam-se os engarrafamentos, as calçadas estavam cheias de gente, as aulas eram chatas, o professor de direito público gaguejava com sua entonação arrastada, suas piadas infames, seu jeito de inclinar a cabeça lendo em voz monocórdica suas notas, um tédio que flutuava como um bafo forte no ar... E ela, Ujine, tinha vontade de correr, de dançar. “Que foi que te deu? Você parece ótima!” A amiga Micha a olhava com expressão sarcástica. Não era mesmo um pouco ridículo? E tudo por causa de um rapaz que ela só conhecia de seis meses pra cá, que entrara em sua vida sem que ela nem percebesse, causando tanta mudança. Enfim se acabara o tédio, a tristeza? Ela tentava raciocinar. “Não, não era nada demais, apenas o prazer de existir. – Mas era grande a novidade, algo inédito! Agora então já não se morre, não se fica mais doente, tudo vai bem no mundo? – Um momento de abandono, digamos, um interregno, uma brusca alteração do seu estado de espírito. – Um prazer egoísta, né? – É, se assim lhe parece; é preciso ser pateta pra não ser egoísta.”
Impossível raciocinar a respeito. Tornado elástico, o próprio chão se levantava, milhões de molinhas, milhões de bolhas, as articulações quentes, a corrente elétrica que atravessava seu corpo, que passava por suas pernas, pelos braços, e ao andar ela ia abrindo e fechando as falanges para melhor sentir a sua liberdade, sorria para as pessoas que a tomavam por louca.
Ela se espantava. Então o amor era isso? Uma espécie de auréola sobre sua cabeça, uma espécie de carapaça invisível, sentia-se muito abrigada, no âmago, ela se sentia invencível. Um fluido, ela dançava.
Aos encontros, ia sem segunda intenção. Samuel não queria nada de sério, nada de definitivo. Dizia apenas: “Então eu te ligo, tá?”. Mas nunca lhe dera o seu telefone. Dizia que não tinha celular, tinha somente um número no trabalho, no banco, e ligar pra lá, nem pensar. Vai ver que ele se escondia por trás desse trabalho, por trás dos pais. Tinha falado um pouco a Ujine sobre a mãe, uma mulher frágil, que não contava senão com ele, depois da doença do pai. Moravam todos no mesmo andar do mesmo prédio. E a mãe, quando ele custava muito a voltar à noite, ligava para os hospitais, a polícia. Era meio absurdo, sendo um rapaz de trinta e cinco anos, mas Ujine ao mesmo tempo tinha ficado comovida com aquele amor filial. Não tinha ninguém, morta a mãe, o pai no fim do mundo, o irmão longe, desligado dela. Talvez por isso se sentisse tão livre, tão leve. O amor era um vento violento e Ujine tinha plena liberdade para soar como uma harpa de relva, rodar como um moinho, sentir aquele movimento que fora disparado em seu próprio centro, uma vertigem no oco do estômago, um eixo que vibrava girando. Por isso, sob seus passos, o chão era elástico, sonoro, liso, sem nenhuma ruga, nenhum vazio.
       Agora, na rua, as pessoas olhavam para ela. No trabalho, na faculdade, nas lojas, sentia como atraía os olhares. Ia querer saber se havia algo errado, escondendo-se por trás dos cabelos, baixando a aba do boné sobre o rosto. Agora porém corria para os encontros com Samuel, ou simplesmente pensava muito nele, e os olhares alheios deslizavam, vindo na sua direção. Sentia-se protegida por uma aura, no interior de um halo de luz. Via o semblante do amado, o brilho dos seus olhos castanhos, a linha das sobrancelhas, a do nariz, o debrum perfeito dos seus lábios.


J. M. G. Le Clézio, História do pé, p.20-21.

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